Paulo de Carvalho
É autor de músicas muito populares no entanto, ao fim de 50 anos de carreira continua a ser mais conhecido pela voz. Guarda ressentimento?
_Estou à espera que um ano destes tenham algum reconhecimento. Não sou eu que tenho importância, faço o que gosto, tenho essa sorte. Há gente a fazer música maravilhosa pelo mundo inteiro, Ivan Lins, por exemplo. Só que ele saiu do Brasil, entrou para outros mercados e chegou a todo o mundo. Outros têm mais dificuldade. São as contingências do mercado, da profissão e do país que somos.
E é por isso que detesta que lhe chamem «a Voz» ou Sinatra português?
Acho muito graça quando me chamam o Sinatra português, é que eu nunca gostei do Sinatra. Gosto do Tony Bennett. Em Portugal temos de ser sempre «o qualquer coisa do estrangeiro». Finalmente, já há vários portugueses que alteraram isso - o Mourinho, por exemplo. Quanto à voz, antes de mais, não gosto porque não é justo. Num país em que há tanta gente a cantar. Se me puserem para aí nuns cinco melhores cantores em Portugal, concordo. Como a voz, não. Depois, porque não me limito só a isso. Não me ponham só esse rótulo, porque eu sou mais coisas dentro da música.
-Já agora, a quem pertencem essas outras quatro vozes?
No fado, por exemplo, o Ricardo Ribeiro, o Carlos do Carmo, o Camané. Na música dita ligeira, o Rui Veloso, Luís Represas. Se quiserem uma voz menos popular mas muito boa e cheia de musicalidade - Fernando Girão. Mas há muitos mais.
Se a sua voz não é melhor voz portuguesa masculina de sempre, como a define?
_Talvez a minha voz seja identificável em qualquer tipo de música, talvez eu tenha uma capacidade diferente de servir as músicas. E isso resulta do que é inato e do que fui aprendendo.
Qual foi a primeira coisa que aprendeu sobre canto?
_Há duas questões básicas - a afinação e o sentido rítmico. Mas há muitos que não têm isso e são grandes artistas, grandes vendedores de discos. Se vivesse um país onde isto fosse levado a sério, muita gente que canta não poderia, ou não deveria, fazê-lo. Nos Sheiks estive solto para harmonizar em função do que eu entendesse porque não era o cantor principal. E isso levou ao desenvolvimento do ouvido harmónico. Foi a primeira coisa que aprendi.
Antes de entrar para os Sheiks, já tinha dado pela sua voz?
_Não, nem cantava. Assobiava mais. Uma das coisas que sempre se disse na minha família é que nunca me ouviram cantar em casa, nem no banho. E mantenho. Lá em casa, quem canta para as nossas filhas é a minha companheira.
Gosta de cantar ou como diz o Chico Buarque «gosto mas quero que acabe depressa»?
_Gosto de fazer música e o meu instrumento é a voz. Quando estou com as pessoas certas, quando uso a voz e quando percebo que estão a sair coisas bonitas, gosto. Essa é a parte melhor de tudo isto. Quando nos entendemos em cima de um palco, sobretudo quando estamos numa área de improvisação, gosto muito de cantar.
Sofre antes de ir para o palco?
_Sofria muito. Agora já não.
Medo de a voz de falhar, de estar perante o público e ela não estar lá?
Tinha mais a ver com a minha timidez. Era um nervoso enorme que me secava a boca e que levava a que não rendesse nunca o que podia render. Enganava-me na letra, como aliás me enganei no Festival de 1974, no E Depois do Adeus. Ficava tão nervoso que nem dava pelo erro. Foi assim durante muitos anos.
E depois, porque é que deixou de ser tímido?
_Nós vamos aprendendo a viver.
Fumava muito antes de entrar em palco?
Antes durante e depois. Fumava três maços por dia. Chegava a gravar às dez da manhã com um cigarro na mão. O que faz a ignorância...
Nos anos 1990 perdeu a voz. Foi o maior susto da sua vida?
_Não foi por causa dos cigarros porque já não fumava há três anos. Rebentei com as cordas vocais por mau posicionamento físico. Era muito curvado e isso criava uma tensão enorme na região do pescoço. Não, não foi um grande susto. Foi, sobretudo, uma enorme chatice durante sete ou oito meses. o meu medico mandava me tomar Xanax, porque pensava que era um problema psicológico. Aminha dúvida era esta: «Posso continuar ou tenho de ir para empregado de escritório?» Estava preparado para terminar as coisas de um dia para o outro.
Tão simples quanto isso?
_Gosto de resolver as coisas o mais depressa possível. Enquanto elas não ficam resolvidas eu sofro bastante. Se calhar por isso é que as resolvo.
Quando é que se apercebeu de que estava sem voz?
Estava nos EUA a cantar com a Dulce Pontes, a cantiga As Sete Mulheres Do Minho e de repente tive de cantar uma oitava abaixo. Depois fui operado pelo professor Pais Clemente, do Porto.
Quando é que foi o auge da sua voz?
_Depende da forma como nós entendemos o auge. Se o auge é ter uma brilhante voz que dá para tudo, que aguenta um minuto de grito final, então já foi há alguns anos. Se o auge for cantar bem, é agora. Cantar bem, com tudo isso que engloba.
De todas as cantigas que cantou, há uma favorita?
_Há várias. Normalmente, não são as conhecidas. Gosto muito de uma que se chama Um Beijo à Lua. Quase ninguém conhece. É uma das cantigas do nosso espetáculo.
É capaz de cantar uma cantiga se não gostar da letra?
_A minha vontade era ser pianista, saxofonista ou guitarrista. Não sendo, toco voz. Falando temos a possibilidade de dizer coisas através da música. Eu tenho a preocupação de não dizer uma coisa qualquer.
Compor ou cantar?
_As duas coisas. Cantar já foi um sacrifício muito grande, há 20 anos que não é. Compor pode ser um ato solitário mas também trabalho de uma equipa. Essa é uma das vantagens, sempre tentei compor em conjunto. Por exemplo, uma sessão para uma cantiga com o José Carlo Ary dos Santos era uma festa. Era fascinante ver como depois de nascer um poema lindíssimo, o Zé Carlos achava que não gostava desse, rasgava a folha onde estava escrito e fazia logo outro ainda melhor.
Quando lhe pedem uma cantiga dizem-lhe como é que a querem?
_«Quero assim e assado» não dizem seguramente. Pedem «faz uma cantiga que eu gostasse de cantar». Aí tento saber como é a pessoa. e qual o projeto, se sou eu a fazer o texto. Faço textos porque me pedem ou porque existe a necessidade. Normalmente, começo por perguntar se há algum poema. Ainda agora o Marco Rodrigues pediu-me uma cantiga e eu perguntei-lhe se tinha um texto - ele tinha um muito bonito do Manuel Alegre. Ficou um canção muito bonita que ele vai colocar no próximo disco.
E já recusou encomendas?
_Não. Nunca recusei. Quando tem de ser, as coisas morrem de morte natural.
E qual foi a música que mais gostou de fazer?
_Lisboa Menina e Moça ou O Homem das Castanhas.... E a que gosto mais é O Cacilheiro. Acho que é mais completa. Gosto muito de duas músicas que fiz para a Marisa - Minha Alma e Meu Fado Meu. Em relação ao Meu Fado Meu, também foi uma sorte ter sido ela a cantar. Correu o mundo.
Como é o processo criativo?
_É preciso fazer uma música... Faço. Trabalho melhor sob pressão do que com tempo.
-A obrigação traz mais inspiração, é isso?
Às vezes agarro na viola, o único instrumento que toco além da bateria, e muito mal, diga-se, e tento que me saia qualquer coisa. Pode demorar muito ou sair à primeira. Guio-me sempre por isto: se no dia seguinte acordo e canto aquela melodia ou me lembro dela com facilidade, sei que estou no caminho certo.
Foi assim com Lisboa Menina e Moça?
_Essa nasceu logo. A cantiga foi feita com outra letra, do Joaquim Pessoa, e mandada para o festival de 1976, quando o Carlos do Carmo cantou as dez cantigas. Não foi escolhida, mas o Carlos gostou daquela melodia e pediu-a. Juntámo-nos depois ao Ary dos Santos e completámos a cantiga com outro poema.
Nunca lhe aconteceu não querer assinar uma cantiga por não gostar da maneira como ela foi tratada?
_Não, porque o essencial está respeitado. Se faço o texto, o texto é aquele. Se faço uma música, a música é aquela. Isso tem sido sempre respeitado. Pode ser mal cantado, arranjado ou até gravado, mas o essencial está lá. Devo dizer, no entanto, que não sou nada ditador quando componho para outro ou seja, não imponho as minhas vontades musicais mesmo correndo o risco de não gostar do resultado final.
Cinquenta anos de carreira: se tivesse de escolher cinco marcos da sua carreira, começava pelos Sheiks, em 1962?
_Sem dúvida. Na primeira década, um momento importante do Sheiks, foi um mês a viver em Paris e a tocar numa das melhores discotecas lá do sítio. Foi o máximo.
O Bilboquet.
_Era um clube da Sylvie Vartan e de um dos homens mais importantes das editoras discográficas, o Eddie Barclay. Lá estive com gente do meu tempo, o Johnny Holiday, uma das mulheres mais bonitas que vi na minha vida Marie Laforet, sei lá, tanta gente.
Como é que foi parar aos Sheiks?
_Foi através de um amigo que trabalhava comigo na companhia de seguros, que me deu a conhecer o Carlos Mendes, o Fernando Chaby, e outros. Eu sou um bocado o produto da rádio da altura. Com 12, 13 anos ouvia muito a Rádio Renascença e isso despertou o meu interesse pela música.
Que miúdo era esse,com 12 13 anos?
_Um miúdo lisboeta da zona de Alvalade, Alvalade de baixo, a dos pátios, o meu pai trabalhava nos barcos e eu vivia com a minha mãe. Quando cheguei aos Sheiks, com 15 anos, era paquete numa companhia de seguros. Era um miúdo que gostava de passear, ouvia música à noite, dava-me com os amigos e fumava muito. Uma bebedeira levou-me a enjoar o álcool.
Nos Sheiks tocava bateria. Porquê?
_Porque era o único que não tinha viola, e nem sabia tocá-la. Pensávamos, erradamente, que a bateria era uma coisa menor. Que era simplesmente o fulano que estava lá atrás a tocar. Penso que tal condicionou um pouco a questão da voz, fazia segundas e terceiras vozes, ficava à vontade e ia harmonizando o que os outros iam fazendo. Foi bom, desenvolvi o ouvido harmónico.
Entretanto começa a ganhar muito dinheiro. Como é que foi lidando com isso?
_Foi demasiado dinheiro para um miúdo daquela idade, fiquei malcriado e arrogante, com as pessoas com quem trabalhava, sobretudo com os chefes. Isto foi tudo muito repentino e nada pensado. Se me perguntassem se fazia ideia do que estava a fazer, respondia que não sabia. Fazia-o porque tocar era giro e divertido. Vender muitos discos e ser conhecido nunca me passou pela cabeça.
A escola parou logo aí?
_Sim. Eu fiz o curso comercial. Isso equivale ao quinto ano do liceu.
E também jogava futebol. Se não tivesse sido a música, teria sido jogador de futebol (médio ofensivo)?
_Mas para que é que isso me serviria? Teria acabado a carreira aos trinta e depois? Assim, sempre consegui andar a jogar até aos 45, 46 anos. A brincar mas a jogar. E continuo a fazer música, o que me interessa mais. No meu caso não houve uma escolha nem necessidade de a fazer. Foi natural.
Fazem um teledisco com um camelo, aparecem às fãs de Chevrolet. Já tinham preocupações de marketing.
_Algumas. Por exemplo, o camelo foi do Zoo até aos estúdios do Lumiar julgo que pelas ruas, tudo preparado pelo Rui Simões. De outra vez, disse-nos" Fomos convidados para ir tocar à queima das fitas, no Porto, e eu tenho uma ideia de como devemos usar aquele dinheiro. Agora, vocês têm de estar de acordo porque não vão ver um tostão". Eram 20 contos, na altura muito dinheiro. Isto em 1964, 1965. Estava um Chevrolet com motorista à saída do avião. No aeroporto houve um encontro com umas dezenas de fãs. Depois, ele alugou uma suite para cada um de nós num dos melhores hotéis do Porto. À porta estavam sempre miúdas e houve uma sessão de autógrafos na Vadeca com uma fila enorme. Chegámos a juntar oito mil pessoas na Feira Popular do Porto, o que foi muito bom.
Ainda sobre a viagem a Paris, nessa altura foi-vos pedido que mudassem de nacionalidade?
_A ideia era fugir à tropa e o Rui César Simões, o nosso empresário na altura, foi á frente, com um filho muito pequeno e a mulher grávida do segundo, para preparar o caminho Mas, depois, o Carlos Mendes, por causa dos pais e de não se saber quando seria possível regressar acabou por dizer que não. Não interessa saber quem teve a culpa, sei que não nos portámos bem com o Rui. Deve ter passado maus bocados. Essa é uma das coisas menos boas de que eu falo às vezes, no balanço destes tais cinquenta anos. Para o Rui já não será importante mas para mim continua a ser, porque é uma coisa que nunca foi resolvida e ele nunca me disse que maus bocados passou, até porque refez a sua vida e é hoje um belíssimo realizador de cinema. Eu estava disposto a ficar mas não me ponho de lado porque fomos nós todos que não ficámos.
Como é que escapou à guerra colonial?
_Omeu pai fez um pedido que resultou sem que eu soubesse. Portanto, nos meus três anos de tropa estive sempre á espera de ser chamado para a guerra.
Era uma vedeta já.
_Não, na tropa era o Manuel Costa. A tropa despersonaliza as pessoas, com tudo o que isso tem de bom e de mau. No meu caso foi útil, porque eu não queria dar nas vistas. Arranjei uma solução para o meu trabalho, com a conivência do bom comandante de companhia: depois de perceber quem eu era e que seria importante para mim sair várias vezes do quartel, pediu-me para fazer o jornal da caserna. Nos intervalos podia sair.
E o que constava do jornal?
_Tinha grande sucesso o meu jornal de parede. O meu pai trazia-me as Playboy lá de fora. Portanto, uma das partes mais importantes e entusiasmantes daquele jornal era uma daquelas fotografias do meio da revista, aquelas que se desdobram em três. Faziam um sucesso enorme.
Como é que os meninos dorock'n'rollse relacionavam com o nacional-cançonetismo?
_Comigo não funcionava nada mal. Ainda hoje sou amigo da Simone. Tenho uma grande consideração pelo António Calvário, acho que foi sempre uma pessoa muito explorada, em quase todos os sentidos. Tenho muita consideração pelas pessoas da geração anterior à minha . Talvez porque sou de uma geração ensinada a respeitar os mais velhos. Em geral, não gostava da música que faziam, mas respeitava.
E agora, não há esse respeito pelos mais velhos?
_Agora é preciso ganhar, passar à frente. E quase tudo serve para passar à frente.
Não se sente respeitado pela geração que lhe sucedeu?
_Não. Mas esta carapuça não serve a todos.
Nos Sheiks conhece Carlos Mendes e Fernando Tordo. Viriam a ser os três meninos bonitos dos festivais da canção e da música ligeira durante muito tempo. Como é hoje a vossa relação?
_Eles estão a fazer um espetáculo, como aliás fizeram depois do primeiro Só Nós Três. Fizeram uma coisa chamada Falas Tu ou Falo Eu. O Só Nós Três não é um conjunto, e cada um de nós tem os seus próprios projetos. Das duas vezes que nos juntámos para fazer aquilo que foi o Só Nós Três, que é um conjunto das nossas cantigas, o público gostou. Portanto, foi um espetáculo que foi de grande sucesso, até porque foi um pouco saudosista.
Pode dizer-se que o Paulo é menos saudosista que Fernando Tordo e o Carlos Mendes, ou seja, que pensa mais no futuro?
_De facto, sempre estive muito mais preocupado com o que vou fazer.
Não se deve voltar ao lugar onde se foi feliz?
_Pode voltar-se mas corre-se riscos.
Entre os três havia ciúmes?
_Acho-me suficientemente seguro para não ter qualquer ciumeira. Agora, isso é uma pergunta para fazer aos outros. Não sei se há algum tipo de insegurança que os faça ter uma atitude menos correta para comigo. Isso não sei. Cada um tem a sua utilidade.
Depois dos Sheiks, o segundo momento-chave da sua carreira foi o festival da canção de 1974?
_Antes, vem o princípio da carreira a solo, quando o Pedro Osório me convida para o Festival de 1970. Mas não há dúvida que, para as pessoas, marca muito o de 1974, e a canção E Depois do Adeus.
Como é que reagiu quando soube que foi a senha do 25 de Abril?
_Soube nessa noite através da RTP.
O facto de ter sido a senha do 25 de Abril teve também algumas desvantagens?
_Reduzir um músico a uma canção pode ser uma desvantagem. E isso tem acontecido um pouco comigo. É uma canção que ficará para sempre ligada à nossa história. Mas antes disso, trouxe-me a possibilidade de cantar com uma bruta orquestra no Festival da Eurovisão em Brighton, onde estava completamente à vontade. Estava na maior, porque é uma questão psicológica. Cá tinha algo a ganhar, lá não.
Gosta da cantiga?
_É uma cantiga difícil, muito datada, musicalmente falando, ainda que muito bonita.
É verdade que o Sinatra quis cantá-la?
_Que eu saiba, não. O único contacto que os autores tiveram na altura, e durante o Eurofestival de 1974, foi da parte de um agente da Ella Fitzgerald. Mas não estou certo que isto seja completamente verdade.
Como é que o 25 de Abril foi vivido em sua casa?
_Primeiro, com medo. Pertenço a uma família de classe média baixa e na minha casa não se falava de política. A Revolução criou uma expectativa de mudança.
Celebrou o 1.º de Maio na rua?
_Não tive braços para tantos cravos. Andei no meio das pessoas, na Avenida dos Estados Unidos, fui até ao 1º de maio, ao Estádio. Andei ali, no meio das pessoas, como quase todos nós. Foi muito bonito ter visto isso tudo.
Porque é que aceitou fazer o hino do PPD?
_Porque acreditava. E porque eram os meus amigos da altura. Foi o princípio da minha aprendizagem política. E porque a letra diz aquilo que eu ainda hoje penso.
Revê-se, hoje, nesse PSD?
_Não. Estou no campo oposto. Apesar de ser amigo de Pedro Passos Coelho, ele sabe.
Quando o meio artístico aderia ao PCP, fez o hino do PPD; quando os artistas saiam do PCP, inscreveu-se no PCP.
_Foi em outubro de 1980, depois da primeira grande derrota do PCP, numas eleições autárquicas. Na segunda-feira seguinte inscrevi-me. Nunca ninguém me quis levar para lá, nunca ninguém me convidou para ir. Nunca pensei em mim enquanto comunista, não sei exatamente o que é mas senti necessidade de participação no lugar que eu pensava que era o mais correto. E continuo a pensar. Entrei e estive lá sete anos. Submeti-me a disciplina partidária, porque essa implica um voto de seriedade, de honestidade. Ia às reuniões aqui de Lisboa - setor intelectual. Fazia participações onde era necessário e onde me pediam, a cantar, claro. Comprometi-me a fazer aquilo que uma maioria decidia. Se há arrependimentos que eu tenho na minha vida foi de não ter votado em Maria de Lurdes Pintassilgo, por disciplina partidária. Em 1987, decidi sair. Enquanto lá estive paguei o preço por estar e quando saí paguei o preço por ter saído.
Foi pacífica a sua saída?
_Completamente, penso eu. Ao fim de uns 15, 20 dias, um dos portugueses que mais admiro, Álvaro Cunhal quis falar comigo. Queria saber porque é que eu tinha saído. Falei com ele e foi um bom monólogo. Disse-lhe que não me interessava pertencer a uma organização onde, quase como que uma qualquer empresa, o subchefe tentava lixar o chefe para passar à frente. Isso já eu tinha visto. Ele disse-me uma coisa muito bonita, e engraçada: que eu nunca perdesse de vista, com o meu trabalho, a luta do nosso povo. E eu respondi: «Mas isso já eu ando a fazer há muito tempo. Não foi por isso que entrei para o partido.» Passados poucos meses, fui um dos poucos convidados do aniversário dele. Estivemos juntos e bebemos o habitual cálice de porto.
E vota?
_Voto.
Em branco?
_Continuo a votar CDU. Sempre votei. Mas isso não me impede de fazer escolhas pontuais. Por exemplo, participei na primeira campanha do Manuel Alegre e apoiei o Pedro Passos Coelho para a Câmara da Amadora, pelo PSD.
Terceiro marco da sua carreira?
_O disco de fados Desculpem Qualquer Coisinha, lançado em 1985.
Disco celebrizado pelos Meninos do Huambo.Foi das primeiros músicos a reaproximar-se do fado após o 25 de Abril e com uma nova abordagem...
_Agora é fácil, na altura é que era complicado. Só o fiz por questões puramente culturais. Estávamos a ser invadidos pela música anglo-saxónica. Nesta coisa da artes maiores ou menores, temos que saber deitar fora muito do trabalho que fazemos, mesmo que gostemos dele, e partir para outro. Tenho noção de que fui percursor em muitas coisas. Não me sinto injustiçado por não ser reconhecido, até porque a história é sempre feita pelos vencedores e eu nunca estive desse lado.
O que lhe faltou para estar desse lado?
_Um lugar-comum verdadeiro - frequentar os corredores do poder. As democracias precisam sempre de alguém que respire contra elas, ou que respire aparentemente contra elas, para que se possa dizer que o são. Mas sobre pioneirismo, há um disco que, tirando os discos da Amália Rodrigues que são intocáveis, marca um certo renovar do fado, que é o Um Homem Na Cidade. Há dois nomes que são imprescindíveis nesse disco: José Carlos Ary dos Santos, e o professor Martinho da Assunção. Foi ele quem pôs por ordem, em termos de fado, aquilo que nós, mais jovens, fazíamos de uma forma empírica.
Mas o Desculpem Qualquer Coisinhafoi um sucesso.
_Era impossível lutar-se contra uma cantiga chamada Meninos do Huambo. Foi, provavelmente, o disco da minha carreira que mais vendeu. No meu segundo disco de fados, Um Homem Português os anticorpos foram tantos que quase ninguém o conhece. Mas foram feitos e estão aí. fica sempre ali, está registado. Não sinto pena de mim.
Onde estava quando o fado foi considerado Património Imaterial da Humanidade?
_No mesmo lugar de sempre, ninguém que me chamou. Provavelmente, nem tinham de me chamar. A forma mais corrente de censura é o silêncio. Eu fiz fados muito populares, cantei bem o fado. Tenho discos de fado. Se calhar é porque sou um cançonetista, mas o Toni de Matos também o foi e sempre teve uma fotografia no museu do fado. Devo dizer que a minha só lá foi posta depois de eu ter dado uma bronca na televisão, num programa do Júlio Isidro.
Revê-se nessa palavra, cançonetista?
_Não, não me revejo. Mas ela existe e não me choca. Eu chamo-me músico. Mas a mim não me faz mossa.
Não estranhou esse esquecimento estando Carlos do Carmo tão envolvido no museu e sendo autor de alguns dos mais populares dos seus fados?
_Essa é uma pergunta a fazer ao Carlos do Carmo.
Nos anos 1990 estabelece uma ponte com a lusofonia. Mais uma vez à frente dos eu tempo...
_Em 1992, faço um disco que é provavelmente um dos melhores da minha carreira, o Música d'Alma, que ninguém conhece. É o princípio da lusofonia, com o Filipe Mukenga, de Angola, o Mingo, de Moçambique, e com o Tito Paris, de Cabo Verde, e que foi a primeira vez que gravou um disco. Levei a lusofonia à Península Ibérica. Achei que a coisa devia de ser mais completa. Sou um iberista convicto. Mais o Vicente Amigo, por exemplo, que é um músico excecional. Cantámos em Cabo Verde e no Canadá.
Fale-me um pouco da relação com o Ivan Lins..
_Começou em 1972, no Festival Internacional do Rio de Janeiro, onde cantei Maria Vida Fria. Depois, voltamos a encontrar-nos, salvo erro, em 1979/1980, na Festa do Avante. A partir daí, nunca mais nos largámos. Temos feito coisas em conjunto. Há dois anos, o Ivan convidou-me para cantar num espetáculo com ele, em Amesterdão, com uma orquestra muito boa, e, curiosamente, fez uma coisa que acho que nunca tinha feito: cantámos uma música de minha autoria. Portanto, meteu uma música de outra pessoa num disco dele. Disco que curiosamente, ganhou o Grammy da música latino-americana no ano seguinte.
Um resumo da primeira década do século.
_Foram anos em que me propus fazer o balanço musical possível, não fiz tudo o que queria, mas parte do que gostava de ter feito está feito e gravado em DVD com o título Vivo. Agora, há que fechar esta porta. Preciso de decidir se deixo de fazer aquilo que tenho feito até agora e saio disparado para outra. Não é uma decisão fácil, até por questões económicas. Eu vivo da música mas a minha vontade é partir no sentido de outro tipo de experiências musicais e, provavelmente, tentar alargar o mercado.
Vai romper com tudo o que fez até agora?
_O simples facto de não cantar mais as cantigas que cantei até hoje, já é uma rutura. Gostava de partir para outras formas e géneros de música. É quase como acabar com o Paulo de Carvalho para dar lugar a um alter-ego de nome Paulo, que faz um tipo de música chamada de etno-urbana. Música étnica, da qual gosto e urbana porque sou um urbano. Sou um citadino, aliás. E vou basear-me, cada vez mais, na música cultural da minha terra, que é Lisboa.
Como está a comemorar os cinquenta anos?
_Com um espetáculo que estou a fazer, com o DVD Vivo, que gravei na Fundação Oriente em grande parte devido à minha força de vontade. É um DVD que não contém todas as músicas da minha carreira, longe disso, mas contém, da forma possível, muitas das músicas que as pessoas gostam de ouvir. É um espetáculo que ando a fazer, com dois convidados especiais que faz todo o sentido estarem ali, que são os meus dois filhos, e que fechará, provavelmente, esta porta em setembro, no cinema Tivoli, em Lisboa, com dois concertos.
Que retrato traça da música portuguesa?
_Faz-se muito boa música em Portugal. O problema é que alguma dela não é bem divulgada.
Ainda acha, como disse há anos numa entrevista, que se passou da geração do Toni de Matos para a do Rui Veloso?
_Agora já não mas durante um tempo houve a vontade de silenciar uma geração. Desde comunicação social aos próprios colegas.
Quem é ou foi a pessoa musicalmente mais importante para si?
Para colaborar comigo numa base de entendimento quase perfeito, o Ivan Lins. Para tocar comigo, uma esperança que ainda não perdi, e que penso concretizar brevemente, o Pat Metheny.
Quem mais influenciou a sua música?
_Os cantores negros norte-americanos. E os instrumentistas, depois. O Ray Charles, para mim, é o pai dos cantores, mas depois há gente que veio a seguir, como por exemplo um cantor chamado Lou Reed. Outro que vem cantar a Portugal e que adorava ver: o Al Jarreau. E oPat Metheny, claro.Mas não dá para ir ver esta gente toda. Apesar de não ser nenhum pobrezinho é muita massa.
Para si, envelhecer é já não conseguir jogar futebol como jogava?
_Basta olhar para o espelho, se é que não me dói o ombro ou as costas, para ver que estou mais velho. Agora, também não é uma coisa que me preocupe muito por uma razão muito simples, porque é assim, já vi os outros. Não me preocupa muito, a vida é assim.
E como é que olha para as fotografias dos anos 1970 e 80?
_Sinto algumas saudades do saudável que era ser magro, não necessariamente daquele fulano em si. Saudades disso e um pouco mais de cabelo em cima.
Nunca foi de beber. Só fumar. E drogas?
_A experiência de fumar droga foi pelos 40 e tal anos. Por duas vezes e não me fez nada. Se calhar, não puxei bem.
Cinco casamentos. Que papel tiveram e têm as mulheres na vida do Paulo?
_Tive boas companheiras, cada uma na sua época. Vivi momentos muitos bons e felizes, mesmo com uma outra desilusão, mas não há dúvida nenhuma que, curiosamente, e espero que ninguém se ofenda, aquela com quem aprendi mais e com quem vivi as coisas mais profundamente, é com esta, apesar de ser bastante mais nova do que eu. Também fiz um esforço muito grande para falar mais das minhas emoções e não ser tão parecido com os meus pais.
Uma música que o comova?
_Muitas do Pat Metheny. É tão grandioso aquilo e não tem letra. Não precisa de letra. Há muitas músicas do Ivan que também em comovem, sobretudo pro causa das letras. São dois que andam sempre comigo no carro.
Quais foram as maiores mentiras que disseram sobre o Paulo?
_Não me lembro de invenções sobre coisas que tivessem escrito sobre mim. Há provocações, que acabam por ser tão engraçadas. A Vera Lagoa, por exemplo, chamou-me marrequinho feio só porque eu disse «gostava de ser útil à revolução» e isso era uma coisa de esquerda. Quem me chama isso é porque não tem nada de verdadeiramente mau para me chamar.
Como é que um dia gostaria de ser lembrado?
_Como um gajo porreiro por um lado, por outro como um músico que respeitou e fez bem a sua profissão. Mas isso só daqui a mais cinquenta anos.
Conta-se que o Sinatra terá dito que gostaria de reencarnar em Pavarotti. E o Paulo?
_Eu não desgosto de mim.
Perguntas de algibeira
O livro da sua vida.
_São vários. Neste momento, a minha paixão são os Cadernos de Lanzarote.
Cena de um filme.
_Há um filme - o 1900 -, sempre. De Bertolucci.
Um lema de vida.
_«E posto que dizer me é excelente / cada vez gosto mais de menos gente».Agostinho de silva.
Uma música para namorar.
_Não consigo namorar com música. Defeito profissional. Há sempre dez por cento que está noutro lado qualquer quando oiço uma música. Pode até ser a pior música do mundo. Para namorar, no meu caso, a música só prejudica.
A última vez que chorou.
_Deve ter sido num filme qualquer, não me lembro. Até num filme de miúdos.
O que é que ainda vê na televisão?
_Por causa da minha filha Maria estou a ver umas coisas que têm que ver com bicharada. É talvez o que de mais sério vejo, até porque não vejo muita televisão. Vejo futebol, não necessariamente o meu clube. Vejo também aquelas séries do AXN e da Fox.
Quanto tempo do dia é que usa para ler jornais?
_Decidi passar os jornais para trás para tentar ler livros.
E o no e-mail?
_Tenho duas pessoas que tomam conta do computador. Mas alguns minutos.
Contra a crise?
_Contra a crise marchar, marchar.
Um lugar para passar a reforma?
_Um palco de um teatro pequeno, com bons músicos.