Paula Rego 'pintada' por Anabela Mota Ribeiro

Após cinco entrevistas a Paula Rego, Anabela Mota Ribeiro faz um retrato escrito da pintora.
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A entrevista é um dos géneros do jornalismo mais nobre e, portanto, dos mais complexos. Até porque mistura os outros registos dessa profissão subliminarmente, como seja a crónica, a reportagem e até a notícia. Como se fosse um quadro com vários pontos de leitura visual que se homogeneízam, mas está tudo lá presente individualmente, ao parecer um tema único - tal como a entrevista - o que é oferecido.

Daí que se possa comparar este volume, que logo no título dá uma boa mostra do que está entre capas, afinal chama-se Paula Rego por Paula Rego, parecendo que a entrevistadora não existiu neste processo, quando houve uma Anabela Mota Ribeiro a intermediar estas cento e cinquenta páginas, como discretamente surge na capa referenciada. Ou seja, este livro é uma pintura que cria ilusões logo que se o observa, que se multiplicam a cada página virada com as respostas da artista.

É fundamental que o leitor não se entregue de imediato à entrevista, porque tanto o prefácio como a introdução exigem leitura atenta para perceber ao que se vai. São os anjos-da-guarda do que se seguirá, com juízos e pistas a memorizar. É o caso do texto de João Fernandes, o diretor adjunto do Museu Reina Sofia, em que aponta a "situação de cumplicidade e empatia" com a entrevistada, uma pintora onde "não há "nada de diferente" para dizer além dos seus quadros ou dos seus desenhos". Por essa razão, explica a necessidade da entrevistadora construir a conversa de forma singular. O que a mesma adiantará no seu texto inicial, colocando o leitor deste livro perante a personalidade da artista, talvez uma das pessoas mais complicadas de inquirir tal é o seu desvario verbal e o modo como (des)organiza o pensamento através do retirar de memórias sucessivas, facto extremamente tão valorizador das respostas como perturbador. Também essa introdução faz um bom esboço biográfico, que nunca é demais para o enquadramento de quem vai entreter o leitor durante essas páginas com reações surpreendentes, que só através das imagens de um filme, por exemplo, se compreendem a nível integral.

A desconstrução do discurso e a insistência investigatória de Anabela Mota Ribeiro conseguem, no entanto, clarificar a protagonista em causa como se a fosse retocando a cada parágrafo em jeito de passagem dos pincéis sobre a tela da folha em branco. Ainda vamos na página 11 e a autora sintetiza: "Há sempre um depois. Há sempre uma história." É uma verdade que se perceciona à nona questão, quando Paula Rego confessa, envergonhada, que só recentemente lera Kafka: "Uma história em que o pai humilha muito o filho, e ele acaba por se matar. Fiquei aterrorizada com essa história, e meti-a no quadro da Celestina." Entrou o leitor de supetão no mundo metafórico da artista, aquela que gosta de improvisar: "O principal no trabalho é quando nos surpreendemos a nós próprios. Não sabemos o que vai sair." Ou da situação do artista estar constantemente obrigado a prestar provas, reações lidas entre vários questionamentos.

O que se lê neste conjunto de cinco entrevistas realizadas desde o inverno de 2003 fica sintetizado nuns versos de Amália, que Anabela Mota Ribeiro repesca logo ao início - "Se o meu sangue não me engana, como engana a fantasia" -, um passo inicial num caminho que vai tornar-se sedutor devido à luta que existe entre a pergunta e a resposta para se obter o colorido que a entrevista, tal como um quadro, necessita. Pode ser a conotação sexual fortíssima da série Jane Eyre, o medo do medo, a solidão que aprecia, o gosto por lulas guisadas, as depressões devido às histórias que lhe servem de tema, ou até o recusar olhar a posteridade.

Está tudo resumido na última resposta, sobre a insegurança da artista: "Muita. Não sei como é sem isso. É assim que eu sou. Não posso tirar. Se pudesse, tirava logo. O escuro? Ui. Não falemos mais nessas coisas [pega num postal]. Olhe que coisa bonita esta..."

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