Paula Rego: "Os meus quadros estão todos ligados com a minha vida"

No ateliê de Londres, povoado de figuras fantásticas, pinta agora Os Desastres de Sofia da Condessa de Ségur e Bastardia de Hélia Correia
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Depois de ver Paula Rego. Histórias e Segredos, o documentário de Nick Willing que tem estreia em Portugal na próxima semana, os quadros dela passam a ter um novo significado. Muito do que era antes incompreensível e estranho passa a ter uma tradução. Como se o filho nos entregasse a chave que ele próprio não sabia que ia encontrar. É uma Paula calma, esta que está no ateliê de Londres e fala de Os Desastres de Sofia, da Condessa de Ségur, o tema dos quadros em que está a trabalhar. Sofia, a menina desobediente e desastrada entre as meninas exemplares. Que melhor história para falar de Paula Rego?

Este texto é um retrato - não o retrato, apenas um - de uma menina muito bem educada, com um pai terno que não gostava de Salazar e uma mãe disciplinadora que fazia vestidos extraordinários. A menina tornou-se uma pintora que conta histórias terríveis, algumas da vida dela, outras colhidas em livros mas afinal ligadas a acontecimentos que viveu: "Os meus quadros estão todos ligados com a minha vida." Os animais são em muitos casos o alfabeto que usa para contar o que é difícil de nomear. Uma mulher a quem acontecem coisas mágicas, como ganhar a lotaria na única vez que comprou uma cautela, ou sair uma única vez do cinema a meio de um filme e deparar na rua com o homem por quem se apaixonou - o pintor Vic Willing.

A acompanhar a conversa e a esclarecer dúvidas, estão Nick e Lila, a assistente que figura em grande parte das pinturas de Paula dos últimos 30 anos. Na parede por trás de Nick, os cinco autorretratos que Paula desenhou no mês passado, quando uma queda a deixou cheia de nódoas negras. São os únicos autorretratos que fez em toda a vida, postos de parte aqueles em que uma máscara lhe cobre o rosto. Porquê estes, agora? "Porque era mais interessante, tinha alguma coisa para mostrar", responde ela. Poderosos, os cinco rostos desfigurados.

"É o que a minha mãe faz melhor, a expressão dos rostos", diz Nick. Fala dos rostos que vemos nos quadros, mas no filme vemos como era Paula em criança, no filme em que Nick usa imagens da família, fotografias e filmes que o avô fazia constantemente. E há o rosto de Paula na juventude, um corpo sensual que dança talvez ao som dos Beatles. E o rosto de Paula agora, depois dos 80 anos, concentrado no desenho, a pintura a pastel em que concentra toda a energia.

A vida de Paula Rego está contada no filme feito pelo filho mais novo, nascido em 1961 em Londres. Vê-se o filme entre o enorme fascínio e o constrangimento de sabermos que aquela mulher está a contar pormenores íntimos a um filho, diante de uma câmara. Porquê? "Porque o Nick estava a fazer um filme e com ele estou mais à vontade. Nem pensava na câmara. Aquilo é tudo verdade, é como eu sinto, é o que se passou. Tudo ajuda para perceber os quadros."

Como reagiu a pintora quando viu o filme em ecrã gigante, na estreia em Londres? "Gostei. Fiquei terrivelmente emocionada, não consegui fazer nada, nem fui no dia seguinte à abertura da National Gallery. Tive de ir para casa descansar." O que a emocionou mais? "Ver o meu marido e a minha mãe, ver os mortos." Por isso não tenciona voltar a ver o filme tão cedo.

Ali nos espantamos com o que a própria pintora diz sobre o que viveu com Vic, desde a festa onde ele falou com ela pela primeira vez: "Tira as calcinhas". Ela tinha 17 anos e obedeceu, como a mãe dissera quando teve a primeira menstruação: "A partir de agora tens de ter cuidado com os homens. Faz sempre o que te disserem para fazer." Quando saiu da festa deixara de ser virgem e estava terrivelmente apaixonada.

Voltaram a ver-se semanas mais tarde: "Nunca na minha vida saí de um filme antes de acabar. Ainda hoje nunca faço isso nem fazia antes. Estava em Chelsea num cinema pequenino e de repente não sei o que me aconteceu e eu saí. Estava lá fora a passar o Vic com o Michael Andrews, um pintor amigo dele. Levou-me pela mão para o ateliê e eu posei para ele durante bastante tempo."

Aconteceu o que ao longo da vida em comum se manteve. Conta Nick que nunca viu outro casal com uma relação tão física, "com tanta luxúria". Ambos tiveram outros amantes mas a ligação dos dois era fortíssima. Casaram-se anos depois, em 1959, quando Vic se separou da mulher. Entretanto, Paula tinha feito vários abortos e tinha decidido manter a gravidez de que nasceu Caroline. E tiveram depois Victoria (1960) e Nick. Mas a primeira filha trouxe Paula para Portugal - ou antes, o pai foi buscá-la a Londres de carro e regressaram ouvindo ópera durante a viagem. Caroline nasceu em Londres, para onde Paula voltou com a mãe e Luzia, a ama que sempre a acompanhou. Retomada a vida com Vic, ficaram em Londres numa casa comprada pelo pai de Paula, José Figueiroa Rego, e passavam sempre as férias na Ericeira. Os filhos foram ficando com os avós, à medida que o tempo ia correndo.

Quem vê o filme fica a saber isto e muito mais, e vai podendo comparar o que é dito com as obras pintadas ao longo da vida e a evolução da capacidade técnica. Pergunto-lhe se não a incomoda que tenha havido até agora tantas interpretações fantasiosas dos quadros: "Cada pessoa vê de sua maneira, não tem importância nenhuma." Nick explicará depois que ela se divertia com as teorizações dos críticos.

Pergunto: como quando vemos um Rembrandt ou um Velázquez e não sabemos tudo o que lá está? "Pois não, mas está pintado muito bem, o que não é o meu caso." Acha que não pinta bem? "Pinto mais ou menos, mas não é aquela coisa." E faço entrar o Anjo (1998) na conversa. "Ah o Anjo, eu gosto muito do Anjo, é a Lila." Eu sei que é a Lila, mas é um quadro extraordinário perante qualquer mestre. "É verdade, sim. Custou-me muito aquela saia, mas gostei muito de fazer, foi muito importante fazer e tem que ver com o Padre Amaro (O Crime do Padre Amaro, Eça de Queiroz, 1875).

E então ela fala de técnica, da experiência até chegar àquela saia: "Foi muito trabalho. Aquilo é tudo a pastel, uma técnica muito estranha, e eu consegui fazer, aprendi sozinha, ninguém me ensinou a fazer aquilo. Na escola não se fazia isso, parecia mal, fazia só óleo. Eu também pintava a óleo e a guache. Mas de repente o pastel pareceu-me uma coisa muito boa porque gosto mais de desenhar do que de pintar com pincel, e o pastel é como estar a desenhar a cor. Faz as cores todas, compra-se já feitas e risca-se e tem-se o prazer do riscar. E é a cor." É um prazer físico? "É muito físico, sim."

Aprendeu com muito trabalho e também atenta ao que Vic lhe dizia. "O meu marido era uma pessoa extraordinária, extremamente inteligente, e sabia de pintura, ele é que me ensinava muitas coisas. Tenho muitas saudades."

Vic morreu em 1988, depois de uma longa esclerose múltipla que o destruiu lentamente e sem piedade. Deixou-lhe uma carta em que dizia: Trust yourself and you will be your own best friend (Confia em ti e serás a tua maior amiga). Nick entra na conversa: "Ele sabia que a mãe ainda não tinha confiança em si própria." "Pois não, eu trazia os quadros para ele ver." E para ele dizer o que devia fazer para melhorar.

Quando se conheceram frequentavam ambos a Slade School of Fine Arts e Vic já era um pintor conhecido, mas tinha começado por estudar escultura.

Não se conheceram na escola, como se viu, até porque Paula tinha menos sete anos. Podiam mesmo nunca se ter cruzado, mesmo depois do episódio da festa, porque Vic estava a terminar o curso. Mas durante longos anos foi Paula quem insistiu em pintar enquanto Vic, sobretudo nos anos em que viveram na casa dos pais de Paula na Ericeira, "não sabia o que fazer". Porém, no fim da vida, já limitado a uma cadeira de rodas, Vic alugou um estúdio e retomou a pintura, com a ajuda de Lila. Fez quadros de grande dimensão, alguns vendidos de imediato, outros patentes na Casa das Histórias, em Cascais. "Uns quadros extraordinários, mágicos", diz Paula. "Ia para o ateliê, até dormia e comia lá. E tinha visões, via coisas na parede, e depois pintava aquilo que via. Fantástico, não é?"

Nick e Paula falam entre si em inglês. É ele que a representa na administração da Casa das Histórias, é ele que trata do arquivo e faz parte da equipa que prepara o catalogue raisonné da pintora. Aos sábados, passa a tarde no ateliê com a mãe a tratar desses assuntos, e depois Paula vai ao cinema, um hábito que tem desde criança. Ia ao Tivoli ou ao Politeama: "Eu adorava ir ao cinema. Levávamos bolas-de-berlim, vimos os filmes todos do Walt Disney, muitas coisas do Fred Astaire. Lembro-me de ver o último filme do Fred Astaire, com a Lucille Bremer, o Yolanda and the Thief [Vincente Minnelli, 1945]." Diz Nick: "Era um filme horrível mas lembra-se que era bom."

E havia um cinema particular, segundo Paula: "O meu pai tinha um cinema em casa, na Rua Damasceno Monteiro, onde a minha avó vivia. Vendia bilhetes às pessoas e punha filmes."

Não é por acaso que o programa da estreia do documentário inclui um ciclo de cinema na Cinemateca, com dez filmes escolhidos por Paula Rego, de 5 a 28 de abril. Lá está a Branca de Neve de Walt Disney, mas também Julieta dos Espíritos de Fellini (1965), Barry Lyndon de Stanley Kubrick (1977), Ondas de Paixão de Lars von Trier (1996), Tudo sobre a Minha Mãe de Pedro Almodóvar (1999) ou O Conto dos Contos de Matteo Garrone (2015 ).

O cinema é um dos hábitos sagrados de Paula Rego, que todos os dias pinta - menos à quarta-feira, quando se reúne com a secretária. Viu também muito teatro e muito bailado, muitas vezes pela mão do amigo Alberto Lacerda, que tinha pouco dinheiro mas comprava os bilhetes. Pouco dinheiro é uma frase-chave na vida de Paula até aos anos 1980. Viveram com a ajuda dos pais, com a ajuda de amigos. Paula tentava vender quadros, batia à porta das galerias e não conseguia mais do que as vendas feitas em Lisboa pelo galerista que a representava. Vic estava já muito doente.

Até que um dia Alexis Hunter, uma pintora amiga, lhe propôs exporem em conjunto na galeria Edward Tota. "Comecei a fazer uns quadros que era a menina com o cão. Eu não sabia o que havia de fazer, a minha amiga Collette disse que era altura de fazer qualquer coisa sobre o Vic. E eu pensei: para se dar um remédio ao cão tem de se apertar os queixos para ele abrir a boca. É uma coisa que magoa para fazer bem. Fiz uma data de meninas a abrirem a boca aos cães para lhe darem o remédio. Depois começou a outra que está a fazer a barba ao cão." Foi com esta exposição que alguém da galeria Marlborough a conheceu e convidou. "Fiquei espantada porque era a galeria do Francis Bacon. Nunca pensei na minha vida ir para uma galeria tão importante."E ali estava miss Beston, que se ocupava de Bacon: "Ela veio ver um quadro que eu estava a fazer, as meninas com o pai na cama, a esfregarem-se nele para ver se o acordavam. Era o Vic que estava paralítico. Eu queria fazer um Lázaro e disse: isto é uma ressurreição. Mas ela achou que devia chamar-lhe A Família." Assim ficou nomeado um dos quadros mais conhecidos de Paula Rego.

Foi nesse período que a vida de Paula mudou. "Conseguir vender é fantástico, conseguir pagar ao leiteiro e à mercearia, fazer compras, comprar vestidos." E sentir o reconhecimento do seu trabalho? "Isso era importante também, mas o mais importante era ter dinheiro para comprar coisas. Porque antes não tinha dinheiro para nada."

Houve um tempo em que Vic dava aulas e também Paula experimentou, na Corsham School, perto de Bath. Iam e vinham de comboio, era bem longe de Londres. Gostava de ensinar? "Detestava, sempre detestei ensinar. Era muito difícil dizer que não gostava das coisas, não tinha coragem." Como se ensina pintura? "É dizer para desenhar melhor. Agora nem se pode, agora não há modelos na escola, mandaram os modelos todos embora, já não há aquelas aulas em que a gente tinha de desenhar um nu durante bastante tempo para aprender."

O que está a pintar agora? Os Desastres de Sofia, já se viu, um dos livros da Condessa de Ségur que agitaram de aventuras a infância dela e de muitas gerações de meninas. Está no ateliê a boneca que Sofia não devia ter aproximado do calor e que, claro, fez derreter desgraçadamente: a boneca nova, a boneca estragada, ambas feitas para, como centenas de outras figuras, serem modelos dos quadros. Mas há mais. "Conhece o livro Bastardia da Hélia Correia? Que maravilha. Estou a pintar também essa história." Porque para Paula só há pintura se houver uma história. Por isso não obedeceu a Vic quando ele lhe disse para fazer uma natureza-morta, uma tigela azul com laranjas. "Onde está a história disso?"

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