Paula Marques: "Vistos gold só deviam ser atribuídos a quem criasse habitação acessível em Lisboa"

A Câmara de Lisboa tem vários planos para tentar minorar os efeitos daquele que é o seu maior desafio: a falta de habitação. A vereadora responsável pelo pelouro diz que a autarquia está a usar todos os instrumentos disponíveis e que até 2021 vai investir 211 milhões de euros. Mas falta o Estado cativar os privados.
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Paula Marques é a responsável pela área mais mediática da Câmara de Lisboa: a habitação. Eleita como independente do Movimento Cidadãos Por Lisboa nas listas do PS, a sua ligação à autarquia já vem desde 2007, tendo, antes de assumir pela primeira vez o cargo de vereadora em 2013, sido deputada municipal (2009/2013).

Defende maior rapidez na decisão política de aprovar legislação relacionada com a habitação - há cerca de duas dezenas de diplomas no Parlamente a aguardar decisões dos deputados - e considera que os privados devem ser chamados a participar nos projetos relacionados com a oferta de habitação. Mas sempre com a autarquia como parte maioritária.

Tem até uma ideia revolucionária: a aceitação de entrega de vistos gold devia ser condicionada ao investimento na habitação com valores acessíveis em Lisboa.

Desde 2013 foram retiradas do mercado de arrendamento de Lisboa dez mil casas. A cidade tem soluções para minorar este problema?

Sozinha não. Não há outra solução que não seja insistir, por todos os meios, na ida as vezes que forem necessárias ao Parlamento. Não podemos deixar esmorecer a pressão sobre as instâncias. Também é caminho promover junto dos promotores privados esta ideia de os convocar para o investimento na cidade no que é o direito à habitação.

Então como se pode resolver esta crise?

Há uma coisa que para mim é importante: não consigo fazer a separação de Lisboa com a questão macro da habitação. Lisboa e Porto são as cidades que têm maior incidência [no problema], mas são precisas medidas estruturais que pensem na questão da habitação como uma responsabilidade de todos.

Os municípios não têm meios para mitigar o problema?

Hoje é impossível serem só as autarquias, nem sequer é justo. É claro que estamos mais no terreno, mais perto das pessoas, mas as mudanças estruturais de que necessitamos têm de ser nacionais.

Que caminho deve ser seguido a nível nacional?

O que é importante nesta altura é a Lei de Bases da Habitação. Aliás, devíamos ter começado pela lei de bases. O direito à habitação está na Constituição [da República Portuguesa] - é o artigo 65.º -, não se refere só à habitação pública. A Lei de Bases da Habitação não é a lei de bases da habitação pública é a lei de bases de [toda a] habitação. Que deve implicar regulação do mercado, utilização dos solos e uma série de questões que promovam a habitação.

Estamos a seguir essa via?

Tenho muita esperança de que se olhe para o direito à habitação e se convoque todos os agentes, nomeadamente o mercado privado. A nova regulamentação no arrendamento urbano, as matérias fiscais, as matérias urbanísticas, alterações da lei dos solos... É agora o momento para se fazer essas alterações, mas há 27 documentos a ser discutidos na Assembleia da República, o Orçamento do Estado para 2019 é apresentado na segunda-feira, e nada disto está lá. Portanto, vai continuar tudo a ser responsabilidade das câmaras...

Lisboa tem 75 mil pessoas em habitação social

Por quanto tempo mais vai continuar esta situação sob a alçada das autarquias? Como no caso de Lisboa?

Durante bastante tempo. Essa inevitabilidade não quer dizer que as coisas não tenham de ser vistas de outra forma. Lisboa tem desde 2009 um programa local de habitação. Tem uma visão abrangente do que é o direito à habitação e depois tem programas concretos no território. Estamos a fazer a revisão da estratégia local de habitação. Estamos a olhar para os programas que estão a decorrer, olhando para situação que é diferente daquela que vivíamos há cinco ou seis anos.

Lisboa tem um parque habitacional com incidência grande, vivem em habitação social na cidade de Lisboa 75 mil pessoas, essa é já a resposta que o Município de Lisboa dá à população. Gerimos cerca de 26 mil fogos. Uma das operacionalidades que temos vindo a fazer nos últimos anos, mas com mais incidência nos últimos três, é a reabilitação do património. Quando digo reabilitação falo na reabilitação dos bairros municipais, que durante muitos anos não tiveram manutenção nem reabilitação.

O programa Aqui Há Mais Bairro 1 e 2 - investimento de 25 milhões no primeiro, 21 bairros, e mais dez milhões no segundo abrangendo mais dez bairros - foi a reabilitação profunda e que abrange o grosso da população que vive na habitação.

Depois começámos a recuperar os fogos que não estavam ocupados. E utilizámos esses fogos para a resposta que temos de dar. Temos dois grandes bairros municipais que estão a ser regenerados - o da Boavista e o Padre Cruz -, o que implica a transferência da população para habitação nossa, reconstrução e de acolhimento de volta da população -, estamos a melhorar a qualidade de vida desta população.

No caso do bairro da Cruz Vermelha, como está a ser tratado este processo?

O bairro da Cruz Vermelha é outra ferida na cidade, é o arrancar da construção de 130 fogos que acolhem toda a população. Os munícipes podem escolher ir para outra zona da cidade ou para o novo bairro.

O bairro vai ser demolido e naquele local não vai ser construído nada [porque a autarquia considerou que não havia condições para permitir habitação naquela zona]. Isto são as intervenções de médio e longo prazo.

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O que há além destes projetos que ainda não seja conhecido?

Começámos a fazer a reabilitação do património disperso. Por exemplo, o quarteirão em frente à Assembleia da República é todo de habitação pública e as pessoas não sabem. Os cidadãos têm programa de renda convencionada e são inquilinos de habitação social que estão aqui há 30 ou 40 anos.

Intensificámos a atribuição do património disperso à renda convencionada, que é o embrião daquilo que é programa alargado de renda acessível, e sempre que temos uma bolsa de fogos - abrimos agora a 19.ª bolsa - pomos a concurso. Renda convencionada dirigida à classe média e por concurso de sistema de sorteio.

Simultaneamente, continuamos a ter a afetação de casas no arrendamento apoiado - renda consoante o rendimento de cada família. A renda convencionada não pode significar menos de 10% do rendimento da família nem mais de 40%.

Mais alguma coisa?

Entretanto, preparamos um programa mais amplo. No Programa de Renda Acessível (PRA) queremos chamar o privado para a questão do arrendamento. Queremos ter parceiros que investem no programa para reabilitar e/ou construir fogos direcionados ao arrendamento acessível.

E começámos a trabalhar também num terceiro pilar: o setor cooperativo. Temos vindo a trabalhar com um novo movimento cooperativo, para serem nossos parceiros no PRA. Não na perspetiva de comprar, mas sim ficar com o usufruto da habitação. O direito à habitação é também o direito do uso da propriedade e não só a aquisição. Hoje encontramos fogos que foram adquiridos pelo movimento cooperativo que ou são postos à venda com valores especulativos ou servem para alojamento local. Isto é perverter o que era o movimento cooperativo.

Habitar o centro histórico: decidimos abrir um concurso extraordinário direcionado para pessoas que já vivessem nessa freguesia e estivessem em risco de perder a habitação devido à não renovação do contrato de arrendamento e que não tivessem outra solução de habitação. Ajudámos essas famílias - são cem casas que estão afetas a este programa e mais de metade das casas já estão afetadas.

Estamos a pensar se alargaremos a outras freguesias, nomeadamente a Arroios e à Estrela, que são as mais próximas. E chegaremos ao final deste ano com 750 casas entregues por afetação direta de habitação construída e reabilitada. Somamos a isto o subsídio municipal de arrendamento, que abrange mais de 650 famílias.

Mas tudo isto é uma pequena gota nas dez mil casas que saíram do mercado de arrendamento em Lisboa nos últimos cinco anos...

Claro, mas estes são os instrumentos que a Câmara de Lisboa tem. Digo sempre que as autarquias trabalham com os instrumentos que têm, que inventam muitas vezes e vão para o terreno com os meios que têm. O investimento direto de Lisboa - não estou a falar de edifícios nem no valor do terreno - até 2021 são 211 milhões. Este é o orçamento da câmara para a habitação. Vou querer comparar o que vai estar no Orçamento do Estado para 2019... Vou comparar sim.

E a autarquia equacionou mais "instrumentos"?

Há um outro programa que é por adesão voluntária, mas que gostava que fosse obrigatório: de cada vez que um promotor privado fizesse uma intervenção de 25% dessa obra devia ser para habitação. A autarquia quer que 25% sejam afetados à habitação acessível. Mas isso só pode ser de adesão voluntária.

A cidade entende que há investimento do privado e a cidade entende que uma parte tem de ser entregue para renda acessível.

Mas há interessados neste tipo de projeto?

Há muitos interessados. A questão aqui é ter vários instrumentos em simultâneo. O projeto de renda acessível de São Lázaro é promovido pela Câmara Municipal de Lisboa, que colocou em concurso e os privados vão projetar, construir e manter durante o período de concessão. No centro histórico da cidade é importante para a nossa política de reabilitação. Agora segue-se a Gomes Freire. Este programa tem sempre em consideração equipamentos, como creches, por exemplo, sempre que não existam no local.

Qual é a perspetiva?

A nossa perspetiva do PRA é para o longo prazo, ou melhor, é um plano a médio e longo prazo. Quanto mais unidades públicas houver no mercado, mais conseguimos regular o mercado. Mas, se ao mesmo tempo não tivermos políticas estruturais que consigam minimizar os dez mil fogos que desapareceram, não é possível lá chegar. Quem achar que sim é demagógico e eu não sou.

Tudo isso requer investimento estatal.

Precisamos de maior investimento público, mas o investimento em habitação continua a contar para o limite de endividamento. Temos de ter a nível nacional medidas que possam ajudar as autarquias a chegar a um ponto de equilíbrio. Tivemos uma alteração da cidade em pouco tempo e não estávamos preparados para essa mudança. É preciso mais.

E relativamente aos imóveis da Fidelidade Seguros? As opiniões divergem em relação à atuação da autarquia...

A Câmara de Lisboa não consegue comprar a totalidade dos prédios da Fidelidade, só em Lisboa eram mais de 300 milhões. Seria quase um terço do orçamento total da autarquia só para aqueles prédios. Pensar que seria possível a câmara comprar é impensável. Felizmente, o direito de preferência foi alterado.

Quer dizer que a resolução desta crise de habitação passa por uma convergência entre o público e o privado?

Não podemos pensar que é só o setor público que responde ao direito à habitação, é impensável. Não há razão para que o setor privado não seja parceiro do setor público. Tem é de ser garantido o interesse público, por isso é que somos muito cuidadosos. Precisamos de aumentar a oferta, pois há procura [de habitação].

Teme outro caso como o da Fidelidade?

Não temo um outro caso idêntico ao da Fidelidade.

Mas a verdade é que estão mais de 20 diplomas na Assembleia da República relacionados com a habitação, algumas decisões deviam ser integradas no Orçamento de Estado que é apresentado na segunda-feira e nada avança. Como lida o responsável pela habitação de Lisboa com isto?

Com dificuldade, mas sem esmorecer e sem desistir. Quando desistirmos não estamos cá a fazer nada.

Mudanças na legislação sobre o alojamento local ajudam a este combate?

Ajudam. Temos quatro coisas que concorrem para este processo: a voracidade de conseguir um lucro rápido e alto (o processo especulativo); a política que temos tido em relação aos vistos gold, o estatuto de residentes não habituais...

Em relação aos vistos gold, apoiaria uma alteração da legislação?

Veria com bons olhos três coisas: que fosse muito claro e escrutinado como são atribuídos os vistos gold e que capitais estão envolvidos. É a minha posição, que é a posição dos Cidadãos Por Lisboa e do [vereador das Finanças da Câmara Municipal de Lisboa] João Paulo Saraiva. Um instrumento como os vistos gold assim não é produtivo, é nocivo. Os vistos gold só deviam ser atribuídos a quem criasse habitação acessível em Lisboa. Só se fossem atribuídos para quem fizesse habitação na cidade de Lisboa a valores acessíveis. Dir-me-ão que isso é muito radical, mas também a crise é muito radical.

A alteração da legislação, termos um perímetro de contenção nas zonas mais pressionadas em termos de alojamento na cidade e podermos decidir em que zonas não pode haver mais alojamento local. A pior coisa que pode acontecer é entrarmos num discurso de fechamento.

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