Paul Auster volta ao romance com quatro livros num único

São 860 páginas com a história de um jovem que atravessa as décadas mais complexas dos Estados Unidos no século passado. Um romance de fôlego que exige muito ao leitor.
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O regresso do escritor Paul Auster ao romance é em grande, afinal a tradução portuguesa tem 862 páginas de letra pequena, diminuída de modo a não chegar ao milhar. Ser grande em tamanho não quer dizer que enquanto volume tenha dimensão para integrar a estante do Grande Romance Americano.

O que é pena, pois o autor já deu muito à literatura de matriz norte-americana com as narrativas escritas entre 1987, No País das Últimas Coisas, e 2005, com As Loucuras de Brooklyn. A finalizar esta época áurea da sua literatura, publicou um ano depois o Viagens no Scriptorium, que era o volume unificador das várias personagens dessa época. Isto para não referir A Trilogia de Nova Iorque, de que muitos gostam...

Amanhã, com o título 4321, chega este novo romance de Paul Auster às livrarias portuguesas. No qual se entrega a um trabalho de costureiro a fazer um vestido de noiva muito rendilhado que parece não ter fim. Diga-se para já que 4321 não é um mau romance, muito pelo contrário, pois faz um travelling gigantesco sobre a América que conhecíamos. Até para compreender a atualidade eleitoral de Donald Trump é um bom contraponto, pois oferece a possibilidade de perceber as contradições sociais nunca resolvidas, as diferenças raciais sempre almofadadas e uma inventividade própria do self-made man/woman mascarado, razões para este presente.

Se fosse preciso indicar o destinatário deste romance, poder-se-ia dizer que é próprio para quem queira conhecer os Estados Unidos através do relato exaustivo da sua realidade mais comezinha. Há um protagonista, o jovem que faz quatro em um, de nome Ferguson, que leva o leitor a viajar pela sua vida. Centrado em si, as ondas da perceção daquela sociedade vêm até ao leitor de forma suave: a história da família. Descrita ao longo de dezenas de páginas, coisa que todos os americanos que tenham um antepassado imigrante que tenha entrado pela Ellis Island gostam de colocar num livro.

Inicia-se com uma piada curiosa e divertida que pode ser interpretada como uma explicação para todo o livro, a da necessidade do estrangeiro se rebatizar e renascer para a nova vida que a América lhe oferece. Porém, se a primeira página é esclarecedora daquilo a que Paul Auster nos quer levar, só 858 páginas a seguir é que está a chave para o desenrolar da complexa narrativa que o escritor divide em múltiplos capítulos - um dos quais uma página em branco -, nas últimas duas folhas.

Ou seja, 4321 é tão longínquo que o escritor sentiu necessidade de criar um final em que explicava a teoria por que optou neste romance. Entretanto, à página 190, o leitor acha que a primeira versão de Ferguson "morre"...

Fixações do escritor

4321 vai radiografar obsessivamente algumas fixações de Paul Auster, designadamente a arte do basebol em quatro páginas seguidas (p. 48) na primeira vez e com mais de uma vintena de outras páginas espalhadas pelo romance. A segunda fixação é a de um pai ausente mas empreendedor, que é analisado por todos os cantos da sua mente até ficar desfeito à imagem de um homem que praticamente não merecia ser o gerador de Ferguson.

A terceira é a de recordar os filmes a preto e branco de humoristas dos anos 50, como a dupla Bucha e Estica, que é vista de cima a baixo durante várias páginas e em sucessivas partes do livro. A quarta serve para construir um dicionário completo de todo o erotismo possível na descoberta do corpo na adolescência. Área onde o catálogo tão completo é (in)justificado pela idade de Ferguson e as suas primeiras experiências, regressando à primeira vez com a amiga Amy, repetindo-a sob outros ângulos ou à sombra da morte de John F. Kennedy (p. 282); à amizade permissiva com Andy que o faz descobrir prazeres sexuais (p. 339), tudo isto em inúmeros flashbacks.

O 4321 de Auster tem muitas páginas, portanto o escritor tem campo para se esticar como deseja a nível da sua história. A vida de Ferguson tem início em 1947 e vai no livro até 1970, com um final que se torna - como sempre em Auster - abrupto se tivermos em conta todo o espaço a que teve direito. Pelo meio há bons artifícios (p. 72), os casos que afligiram a América, como o da execução dos Rosenberg (p. 110), as revistas da época a ajudar a história, exemplo da Mad (p. 123 e outras), a música clássica de forma insistente (p. 301 e outras), os campos de férias (p. 250 e outras), as séries emblemáticas como a Twilight Zone (p. 319), os confrontos sociais do Domingo Sangrento (p. 401 e outras), os clássicos do cinema de Hollywood e de França (p. 588 e outras), o Vietname (p. 639 e outras), as lutas nos campus (p. 656 e outras), a crítica aos grandes jornais (p. 770)... Seguem-se as tais páginas finais de explicação da teoria dos quatro perfis e termina com uma mentira histórica, a eleição de Nelson Rockfeller como 40.º presidente dos Estados Unidos em vez do ator de cinema Reagan.

O mais interessante deste calhamaço será o facto de quem chegar ao fim poder perceber o preço a pagar pelas escolhas que cada um faz na vida e, também, compreender o peso da realidade nesse caminho. Será o lado mais forte deste romance que, se Paul Auster o provar ao leitor, valerá a pena ler.

Ficha do livro

Título: 4321

Autor: Paul Auster

Edições ASA

PVP: 29,9 euros

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