Património e responsabilidade

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Nos dois primeiros meses de 2019 as projeções anteviam o melhor ano de sempre para o Mosteiro das Batalha em número de visitantes: mais de 520 mil, dos quais 32 mil alunos de diferentes níveis de ensino.

E mais 150 mil visitantes só na Igreja, de entrada livre. Previsões que corriam a par do aumento consolidado do turismo (ainda para mais estando Fátima aqui tão perto) e cujos resultados se confirmariam seguramente nos restantes monumentos, museus e palácios.

Mas este seria também um ano ímpar na dinâmica cultural deste Mosteiro porque estavam programados mais de uma trintena de concertos, acolhendo vários festivais externos e um próprio (o Artes à Vila). E contávamos ainda acolher 3 congressos internacionais de História, 3 exposições e 1 instalação artística e ministrar 2 cursos de formação, 1 curso livre de História, bem como editar 4 publicações.

E o 2020, sem pandemia a contaminá-lo, deveria confirmar estes números e esta dinâmica.
De repente, um Mosteiro fechado, vazio. Quase só "pedras mortas", como diria Rabelais, numa expressão que Guilherme d"Oliveira Martins tão sabiamente carrega de sentido quando fala de cultura em geral e do património em particular, contrapondo-a, tal como Rabelais o fez, às "pedras vivas", que somos todos nós.

Assim, de repente, por duas vezes, meses seguidos, um vazio perturbador: o da falta dos visitantes e dos grupos de alunos a seguirem os atores nas visitas encenadas; da falta dos concertos, da ausência dos fiéis nas missas dominicais na Igreja, dos militares na guarda de honra aos Soldados Desconhecidos, dos casamentos e do bulício dos convidados antes e depois das cerimónias.

No início soube muito bem percorrer sozinho o Monumento, usufruí-lo e contemplá-lo inteiramente vazio, sem mais ninguém. Mas foi uma contemplação que nos deixou logo problemas de consciência, por ser tão egoísta.

Na realidade um monumento só nos vincula verdadeiramente a uma emoção especial quando é visitado e percorrido, mesmo que apressadamente. E como excluir alguém do direito de se apropriar diretamente dessa emoção contemplativa e de, através dele, se ligar a uma cultura específica e se deslumbrar com o engenho artístico de quem o concebeu e construiu, mesmo que rodeado de mais trinta pessoas?

E se é certo que o número de visitantes não é o que mais prioritário deve ser levado em conta na gestão de um monumento como o da Batalha, a verdade é que a análise desse número diz muito da forma como o património está a ser usufruído, vivido e, portanto, conhecido. Diz muito, ainda da cultura em geral e das desigualdades culturais. Para dar um exemplo, na projeção para 2019, dos 520 mil visitantes só cerca de 1/3 seriam portugueses - o que evidencia, por um lado, o nosso baixo nível de fruição do património monumental, mesmo tratando-se do mais conhecido, mas, por outro lado, nos indica que é urgente fortalecer, retomar ou mesmo criar de raiz, dinâmicas educativas e pedagógicas bem estruturadas e a longo prazo.

Porque o património é coisa de futuro e há um trabalho intenso a fazer com as novas gerações: de motivação, de incitamento à fruição do património como algo essencial na construção da identidade pessoal e social, no desenvolvimento da sensibilidade e, portanto, no enriquecimento cultural e humanístico.

É necessário deslumbrar as novas gerações, emocioná-las, vinculá-las definitivamente a uma herança que urge conhecer e preservar. Mas não apenas com encantamentos temporários, inconsequentes ou banais. Na realidade é necessário toda uma política cultural coerente e que possa fazer espera de resultados só a médio e longo prazo. Nessa ideia de um património ancorado no futuro, se integra igualmente o conceito tão importante, mas infelizmente tão gasto pelo seu uso displicente, de sustentabilidade.

Diz Italo Calvino em Seis Propostas para o Próximo Milénio (1985), referindo-se à Literatura, que "iremos ao encontro do próximo milénio sem esperar encontrar nele nada mais do que aquilo que seremos capazes de levar-lhe". Deixa-nos perplexos a singeleza desta constatação. Aplicada ao património faz, na verdade, apelo intransigente a um dos nossos maiores deveres: ao da responsabilidade. No presente, para com o futuro.

Diretor do Mosteiro da Batalha

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