Patrícia Müller conta a história da bisavó, que perdeu tudo com o 25 de Abril
"Maria Laura é uma senhora desde que nasceu." Ou seja, desde 1924. Maria Laura viveu a maior parte da sua vida com o pai, uma vez que a mãe saiu de casa quando ela era criança para viver outro amor. Maria Laura tinha uma relação obsessiva com o pai, que idolatrava, mas aceitou casar-se com Carlos, mesmo sem estar apaixonada, porque é uma senhora. Faz crochet, não tem sentido de humor, vai à missa, dá ordens às criadas, tem dinheiro mas não o exibe, vai à cabeleireira não por vaidade mas porque uma senhora tem que andar arranjada. Nunca deixaria o marido, mesmo que se apaixonasse por outro homem. Nunca diria ao marido para se ir embora, mesmo sabendo que ele tinha outras mulheres, algumas suas criadas. Nunca abandonaria a filha, mesmo que não concordasse com as suas opções de vida. Uma senhora, portanto.
Patrícia Müller conheceu Maria Laura, que era a sua bisavó, embora já não a tenha conhecido realmente. Nos últimos anos de vida ela enlouqueceu. "Lembro-me de a ver, sempre vestida de negro, muito séria, mas quase não falei com ela", conta a bisneta. Até que, um dia, numa conversa com a avó, esta lhe disse: "Sabias que a minha mãe foi raptada?" Seguiram-se horas e horas de conversas, com a neta a fazer perguntas e a tirar notas num caderno, e a avó a contar as histórias da família até lá atrás, ao século XIX. E ficou tão fascinada que achou que tinha que escrever um livro.
Uma Senhora Nunca é esse livro que a ex-jornalista Patrícia Müller demorou anos a escrever. Pelo meio, andou a escrever os guiões que costuma fazer para a televisão (como a novela Poderosas), escreveu o seu primeiro livro, Madre Paula, baseado na vida da mais famosa amante do rei D. João V, e teve a sua segunda filha, Glória, que tem agora oito meses. Depois das conversas com a avó, foi preciso passar à parte da pesquisa histórica, incluindo visitar os locais onde as coisas aconteceram. E, finalmente, escrever.
Uma Senhora Nunca é uma mistura entre realidade e ficção. Patrícia Müller garante que todas as personagens e todas as histórias são verdadeiras. É verdade que Gregória foi deixada na roda de um convento pela mãe, uma criada que depois de abandonar a filha se suicidou. E que, mais tarde, o pai de Gregória se sentiu culpado e a foi buscar ao convento. Gregorinha, filha de Gregória, teve um desgosto de amor na juventude que curou casando com um homem mais velho, Policarpo, que foi diretor dos caminhos de ferro. É verdade que um dia reencontrou o seu amor ("a minha avó já não se lembrava do nome e eu chamei-lhe Jorge") e que deixou o marido e a filha pequena. É verdade que o marido a proibiu de ver a filha, Maria Laura. É verdade que Maria Laura casou com Carlos e teve uma filha. E que, um dia, acordou com o barulho dos gritos nas ruas de Lisboa. "Ordinaríssimo", pensou. Perdeu tudo com o 25 de Abril. As terras que estavam na família há gerações, as casas, as criadas.
"Por causa da minha avó, descobri um outro 25 de Abril que não conhecia e que me interessou muitíssimo por ser uma narrativa diferente daquela a que estamos habituados", explica Patrícia Müller. "A revolução trouxe muitas coisas boas e a maioria das pessoas passou a viver melhor. Mas também houve pessoas que ficaram pior, como a minha bisavó." A filha de Maria Laura acabou por ir para o Brasil com o marido. E era Maria Laura que os sustentava, mandando-lhes quase toda a pensão que recebia. "Ela passou fome, isso também é verdade. Não defendo nada, mas digo a verdade: para a minha bisavó o 25 de Abril foi desastroso. Ela ficou muito triste com o que aconteceu."
A ficção acontece no meio disto tudo. Sabendo o que sabe, Patrícia Müller inventou uma vida emocional para estas personagens, imaginou-lhes os pensamentos, pôs-se a adivinhar o que teriam dito. "A investigação é como se fosse o barro que depois é trabalhado para dar origem a uma obra", explica. Atreveu-se a imaginar um amante para Maria Laura, o enteado José Manuel, imaginou-lhe a loucura a chegar devagarinho. "Uma mulher velha que fica sozinha numa casa rodeada de fantasmas, do pai, do marido. Que nunca sai de casa." Vítima de Alzheimer, no livro Maria Laura esquece-se de que era uma senhora, vê a casa ser ocupada por pessoas que não conhece, começa a dizer palavrões.
"É muito arriscado", admite a autora que optou por mudar os nomes de todas as pessoas que continuam vivas e de não dar muitos pormenores das histórias mais recentes (mas gostaria de o fazer num próximo livro, revela). "Eu nem queria que a minha avó lesse o livro mas não a podia impedir. E ela riu-se sozinha a ler e dizia-me, "ai se a Maria Laura soubesse que fizeste um livro a dizer que ela se tinha enrolado com o enteado! Isso nunca seria verdade"." Apesar do risco de ser mal entendida, Patrícia não esconde o orgulho que tem nesta Senhora. "Este é o livro que eu queria fazer. Escrevi-o durante anos e só depois o entreguei à editora. Foi a única coisa que escrevi na minha vida sem qualquer plano ou estrutura, fui escrevendo. Tentei desaprender tudo o que sabia das regras da ficção. Gostava mesmo de continuar a escrever assim. Esta é a escritora que eu quero ser."
Hoje Patrícia Müller está na Feira do Livro mas não a falar deste livro. Às 18.30, no pavilhão da Porto Editora, integra um painel feminino a falar de As Coisas Que os Homens Me Explicam, de Rebecca Solnit.