"Sangue azul" contra "carroceiros": o derby histórico de Lisboa voltou

Dois bairros vizinhos, de personalidade forte e contrastante. Belém contra Alcântara ou os capitães Manuel Rodrigues e Manuel Candeias a revisitarem páginas do futebol português. Belenenses vs Atlético, domingo, 17h00 no Restelo
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Une-os a rivalidade forjada nos anos 50 e 60, representantes de dois bairros com personalidades fortes e contrastantes, geograficamente vizinhos. Belém e Alcântara ferviam em dias de derby: estivadores de um lado, "sangue azul" do outro, "os operários do porto de Lisboa contra a equipa de que chegou a ser presidente Américo Thomaz", fazem questão de lembrar em Alcântara, marcando assim as diferenças de classe. Porém, defendem os do Restelo, são similarmente populares as raízes destes dois históricos de Lisboa, fundações centenárias, berço de Matateu e Germano, nomes maiores do futebol português

Une-os ainda o tempo de hoje. Ambos romperam com as respetivas sociedades anónimas desportivas, assumindo de novo o associativismo, matriz fundacional. Prescindiram dos acionistas, devolveram a palavra aos sócios e pagaram o preço - a despromoção ao fundo do poço que são os campeonatos menores.

O Atlético iniciou o processo de reconversão ao modelo tradicional há dois anos. "Não porque seja contra o futebol moderno", diz Ricardo Delgado, o presidente, mas porque não podia pactuar com uma SAD, entretanto declarada insolvente, patrocinada por chineses que não respeitaram acordos.

Este verão, foi a vez do Belenenses. "Uma descida aos infernos", nas palavras de Patrick Morais de Carvalho, líder dos azuis. Agora, consumado o divórcio, o dirigente está empenhado em impedir que a SAD, a competir na primeira liga e a jogar no estádio Nacional, use o nome e envergue o emblema da cruz de Cristo.

Este domingo, a partir das 17 horas, no Estádio do Restelo, "o verdadeiro Belenenses", apresenta ao sócios a sua equipa, reeditando o derby histórico: "pastéis" vs "carroceiros".

Um capitão de 62 na bancada

Manuel Rodrigues vai lá estar. Miúdo pobre da Rua de Campolide, entrou para as escola do clube (escola da Salésias) em 1952, tinha 10 anos e ali se formou. Começou a jogar na primeira categoria aos 19 anos. "Humilde mas desempoeirado, sem medo de dizer o que pensava", recebeu de Fernando Vaz, em 62, a braçadeira de capitão. Tinha 20 anos. Foi sua durante uma década.

Lateral-direito, "defesa de antes quebrar que torcer" na memória dos sócios, pertenceu a teams de luxo. "Jogava com o Pires, com o Rosendo, veja, trouxe fotografias minhas. Era uma linha média muito boa e uma linha avançada fabulosa. o Peres, o Estêvão, o Matateu, o Yaúca".

Em 1961, foi chamado à equipa das reservas. Largou a oficina e foi colocado como funcionário na secretaria do clube. Ditou o destino que o jogo de estreia fosse contra o Atlético e Anselmo Pisa, o treinador argentino, que ocupasse o lugar de defesa central.

"Eram jogos muito renhidos, com grande rivalidade entre os dois bairros. Os 'pastéis' contra os 'carroceiros', sem desprimor dos de Alcântara. O nome vem do facto de ali se usarem muitas carroças."

Rodrigues, hoje com 75 anos (nasceu a 29 de Outubro de 1942), lembra-se bem desses embates e, apesar de o Belenenses levar vantagem no balanço final, de como era difícil vencer. "Na Tapadinha era um problema e grande. Se lá ganhei umas duas vezes foi muito."

Um sarilho

Ganhar no Estádio da Tapadinha era difícil, sair de lá, um sarilho. "Dos grandes. Aquele trajeto de 300/400 metros era horrível. Não podíamos sair sentados no autocarro. Só deitadinhos, que as pedras ferviam. Enfim carroceiros." Sorri.

Ponto assente, já na altura, era a pressão sobre os árbitros. "Tremenda. Naquele tempo, havia árbitros muito bons mas também grandes compadres. Já existiam os envelopes, bem os via, quando, como capitão, ia entregar os cartões dos jogadores no inicio do jogo."

Tamborila a pasta onde leva as fotos antigas, nervoso, a ver se evita puxar de um cigarro ("evito apenas porque fui recentemente submetido a cinco operações") enquanto remata: "Eu oferecia uma garrafa de vinho do Porto mas outros levavam dinheiro vivinho."

Estamos no Jardim de Paço de Arcos, terra que, diz "está de braços abertos" para si. Os cumprimentos que vai recebendo ao longo da entrevista não o deixam mentir. É popular naquele jardim. Acende então um cigarro, leva tempo a aspirar e a expirar o fumo. "Histórias, deixe cá ver, olhe, há uma que é digna de registo."

A Chicotada

Começa a contar: "Num desses dérbis, estávamos na Tapadinha, a bola sai pela lateral e coube-me a mim, veja lá, ir buscá-la. Não era tarefa agradável. Já nos bastava jogar no campo pequeno, praticamente em cima do público, quanto mais ir à lateral." Era um risco. Confirmou-se: estava a apanhar a bola quando sente "uma valente chicotada nas costas".

Chicotes nos estádios, também guarda-chuvas, de vez em quando navalhas. Retoma: "Eu bem vi quem ma deu, e até pensei ripostar, mas como sabia que o mais certo era ser expulso disse para comigo, cala-te e joga."

Uma passa depois, vem o resto: "Uns bons tempos depois, vou ao Páteo Alfacinha e nem queira saber, reconheço o homem da chicotada. Quem era ele? O dono, o Vítor Seijo, sogro do José Eduardo do Sporting, sabe quem é? Bom, ficámos amigos para o resto da vida." Sublinha, com uma gargalhada: "Grandes amigos para o resto da vida, apesar da chicotada e de gostarmos de clubes rivais."

Rivalidades, de resto, eram muitas e envolviam outros clubes da capital. O Oriental, por exemplo. "Ui, era horrível ir jogar a Marvila. Pedrada que até fervia. Um perigo." O pior momento de toda a carreira, porém, viveu-o em 1969, no Estádio da Luz. Nesse dia, Eusébio completava 28 anos de vida. E foi Eusébio quem o salvou.

Conta: a coisa já estava quente por causa de um desaguisado entre o Torres e o Freitas. Ao desarmar Jaime Graça, que cai, o público pede expulsão, mas o árbitro não vai na conversa. Furioso com a decisão do juiz, o 'terceiro anel' invade o relvado. "Arbitro fugido para o balneário e nós ali, em campo, a ver o que dava".

Levou e calou "duas 'bufatadas' de um velho". Depois, encostou-se a Eusébio, na esperança de conseguir sair do relvado ileso. A dimensão da coisa está retratada no castigo aplicado ao Benfica. Oito jogos de interdição do estádio da Luz.

Manuel Rodrigues pensa "muito muito muito" nesses tempos. E, inevitavelmente, compara. "Dói-me ver o Belenenses nas distritais." Repete. "Ui, Meu Deus, nem acredito." Hoje, "por razões várias", não é sócio do clube. E se por um lado acha bem a rutura com a SAD, por outro lamenta 'ter-se pedido a equipa".

Lágrimas por uma amizade: Germano

Campeão da Europa com a seleção de juniores em 1961, Rodrigues chegou à equipa principal portuguesa pela mão de Otto Glória. A estreia, "o momento mais alto da minha carreira" aconteceu a 12 de Novembro de 1967, no Porto, contra a Noruega (vitória por 2-1). Companheiro de quarto: Germano, figura grande do Atlético, que acabaria por ganhar destaque nacional e internacional no Benfica Europeu dos anos 60.

"Até me emociono quando falo dele. A amizade que eu tinha ao Germano Figueiredo é uma coisa tão bonita."

Acaso alguém tivesse dúvidas - e não haveria quem as tivesse - a polivalência de Germano, jogador completo, ficou provada final da Taça dos Campeões de 1964/65, em San Siro, jogada pelo Benfica e pelo Inter de Milão. Aos 57 minutos, depois de ter sofrido o golo que ditaria o resultado final, Costa Pereira pediu para ser substituído. Germano assumiu de bom grado a responsabilidade de substituir o guarda-redes. E que guarda-redes. Quem mais, quem mais daquela equipa enorme poderia demonstrar na baliza o quanto tinha nascido jogador de futebol?

Germano Luís de Figueiredo, rapaz de Alcântara, o bairro onde nascera a 23 de dezembro de 1932, e onde passou a ser venerado, foi um dos melhores jogadores portugueses de todos os tempos. Em 1960, com sete jogos realizados pelo Atlético e uma paixão pelo clube que o formou, rumou ao Benfica.

"Mestre Germano, meu companheiro de quarto na seleção, meu grande amigo. Saudades, tenho muitas saudades dele." Lembra "o mestre no futebol e o mestre na vida". Um homem reservado, amante de cinema e de música. Que o levou a conhecer a noite, que lhe apresentou o fado, paixão de Manuel.

"Por vezes vou à Adega Machado. Nunca mais foi a mesma coisa. Falta ali o Germano. Falta-me o Germano", o amigo que perdeu em 2004.

Sem caneleiras, claro

Amigos amigos, negócios à parte. Dentro de campo não havia amizades, mas não faltava a lealdade. "Eles sabiam que da minha parte não havia maldade. Era sem querer. Eu só queria a bola."

Conhecido por ser "de antes quebrar que torcer" garante que nunca magoou ninguém. E também que nunca se lesionou. "E não havia as mordomias de hoje. O calçado era diferente e as caneleiras, bom, essas nem nunca as usei. Bastava a meiazinha porque", diz com ironia, "a bola não magoa ninguém."

Na defesa azul, à frente da baliza guardada por Zé Pereira, e com Pires, Paz e Vicente, defrontou os melhores avançados. Porém, não precisa de pensar muito para destacar António Simões. "Jogador extraordinário, grande amigo, um homem e um jogador leal".

Eusébio? "Ah, esse era único, mesmo comparando com o Ronaldo." Germano? "Um dos melhores de sempre, o melhor do mundo na sua posição."

Já com o amigo no Benfica, surgiu em 1965 a possibilidade de Rodrigues passar a vestir de encarnado. Encheu-se de esperança: "Caramba, era a sorte grande." Mas Acácio Rosa, o carismático presidente do Belenenses, vetou o negócio. "Para mim, direitinhos vinham 1500 contos. Muito dinheiro, o presidente não aceitou e assim fiquei, sem que Belenenses aumentasse um tostão que fosse ao meu ordenado."

Moedas de coroa

Outros tempos. "Em relação ao dinheiro é melhor nem falar". Ele sentia mais de que os outros porque, sendo o capitão, era o último do grupo a receber, encontrando por vezes a gaveta vazia. "Certa vez fui levantar um prémio de 500 escudos à secretária e, claro, já não havia dinheiro. Ou melhor, haver havia mas eu teria de receber em moedas de cinco tostões." Dessas, por causa do telefone, havia muitas. Assim foi que levou para casa 500 escudos em coroas.

Uma gargalhada, mais um cigarro. Não tenciona deixar os cigarros. Sempre fumou. "A maior parte da malta fumava e muito."

O Vicentinho

Carreira encerrada em 1973, depois de dois anos na CUF, continuou ligado ao futebol. Treinou o Seixal, foi diretor desportivo no Campomaiorense. Com um filho e um neto, vive para as pescarias e para os passeios pelos jardim de Paço de Arcos, defronte à marginal.

Naquele mesmo jardim avisou várias o grande Vicente Lucas, irmão de Matateu e um dos grandes centro campistas do seu tempo: "Vicente, vai tratar essa ferida no pé, disse-lhe tantas vezes mas ele nunca me ligou, dizia que aquilo não era nada."

Nascido em Moçambique, é conhecido como homem que 'secou' o grande Pelé no Mundial de 1966, em Inglaterra. Rodrigues lamenta a sorte do "Vicentinho" a quem o descuido obrigou a amputação de uma perna. Nada mais triste para quem nasceu com tanto talento nos pés, reflete. Vicente, de 83 anos, vive agora num lar. "Quero ir visitá-lo. Era era um jogador fabuloso, tipo carraça, não dava meio metro. Muito bom jogador e boa pessoa."

Manuel Rodrigues fechou a carreira aos 32 anos, estava ao serviço da CUF. Deve a saída do Belenenses a Joaquim Meirim, o treinador que tratou de o dispensar. "Na CUF encontrei uma equipa extraordinária, o Capitão-mor, o Manuel Fernandes, o Monteiro, o Arnaldo, o Conhé, um jogador fabuloso." Mas a forma como saiu do clube de sempre deixou tristeza e fez mossa. "Aconteceu o mesmo ao Matateu. Acabaria por ir para o Atlético. Um escândalo." Faz questão de ressalvar: "O Manuel Rodrigues é o Manuel Rodrigues mas o Matateu era um símbolo do clube. Não quero comparar."

Matateu, entre o Belenenses e o Atlético

Matateu ou Sebastião da Fonseca Lucas, nascido em Moçambique, marcou o futebol português. Eclipsou jogadores como Stefano e Puskas, conquistou público e imprensa no Mundial de Inglaterra (66)

Veloz e virtuoso é uma figura central na relação entre o Belenenses e o Atlético. Símbolo dos azuis, acabaria por se transferir para o clube rival, por culpa, diz Manuel Rodrigues "dos dirigentes que não sabem distinguir o essencial do acessório". "Se havia um símbolo em Belém era o Matateu". Resume numa frase: "Matateu não era do Belenenses. Matateu era o nosso querido clube."

Lembra a tristeza que foi jogar contra o amigo depois de tantos anos do mesmo lado. "Figura extraordinária, como homem. Como jogador da bola, está bem está, um craque mais completo que o Eusébio."

Do outro lado também há um Manuel

Manuel Candeias, defesa central nascido em Orca, concelho do Fundão, Beira Baixa chegou a Alcântara era um bebé de seis meses. Com nove anos, ingressou no Atlético para bater recordes, de que hoje, aos 73, ainda se orgulha: foi o jogador que mais anos representou o clube - 23 - e aquele que mais vezes vestiu a camisola amarela.

Foi capitão de equipa principal de 63 a 76, ano em que trocou o Atlético pelo Montijo. Em 78, com 34 anos, fecha a carreira.

Contemporâneo de Manuel Rodrigues, partilha com o Belenenses o apreço pelo "grande Germano", o orgulho por terem jogado ao lado de Matateu - "com ele do nosso lado até ganhámos ao Belenenses na Tapadinha"- e as recordações de uma rivalidade reacendida ao fim de muitos anos, primeiro nas épocas 2011/ 2012 e 2012/2012, com ambas as equipas na Liga de Honra e, mais recentemente, em 2015, num jogo a eliminar para a taça da Liga, que o Belenenses venceu.

Bem diz Rodrigues que os adeptos do 'Belém'' são ordeiros e bem educados. De facto, ao contrário do outro Manuel, Candeias nunca sofreu às mãos dos rivais. Há até empatia.

"Num dos dérbis, no Restelo, bati com o ombro no chão e tive de abandonar o jogo pela linha lateral. Foi muito bonita e tocou-me muito a enorme ovação que recebi dos sócios do Belenenses. Reconheceram o meu valor e demonstraram respeito. Por isso não posso dizer deles senão bem."

Ao telefone, vai contando: "A semana que antecedia os jogos era mais tensa que o habitual, é verdade, e talvez entrássemos dentro de campo determinados a sermos um pouco mais duros." Confessa-se. "Eu era um jogador com presença, duro, que fazia valer os meus direitos." Porém nunca foi expulso.

Um pé no Belenenses

Se Rodrigues teve um pé no Benfica, Candeias teve um pé no Belenenses. Mais uma vez a história é comum aos dois homens. Meirim, o treinador que dispensou Manuel Rodrigues, fez tudo para garantir Manuel Candeias. "Dava o Rodrigues e mais dez, tentou pagar ao Atlético em jogadores, mas o meu clube não quis, desde logo porque não tinha capacidade financeira para pagar a essa malta toda".

Ficou em casa, portanto.

"Era uma espécie de escravatura, felizmente hoje os jogadores são mais livres." Impedido de sair, a verdade é que aconteceu a Candeias o que acontecera a Rodrigues e ao fim de 20 anos no clube, foi dispensado.

Lembra-se. No Restelo ganhou 2 vezes e perdeu as restantes. Na Tapadinha conta vários empates, uma vitória e uma derrota.

Hoje reparte a "vida de avô" com a presidência da Associação de Apoio aos Desportistas. Empenhado em criar um lar para os atletas, "à semelhança do lar dos artistas", que receba na velhice os Vicentes do futebol, Manuel, que não vai estar presente amanhã no Restelo por não se encontrar em Lisboa, lamenta ver o seu Atlético nos regionais. "Desejo muita sorte aos dirigentes para que consigam trazer glória ao meu querido clube." Quanto ao jogo: "Que ganhem os meus."

Lenços vs lençóis

Patrick Morais de Carvalho, líder da Direção do Belenenses tinha 7 anos em 1977. Não recorda, portanto, o derby de 22 de maio desse ano, jogado na penúltima jornada do campeonato. No Restelo, o Atlético De Norton de Matos e de Nelo Vingada, já condenado à descida de divisão batia-se com o Belenenses de Vasques, de Artur Jorge, de Jorge Jesus e do Alfredo Quaresma, com manutenção na primeira Liga assegurada. Vencida a partida pelos da casa, seria previsível que tal imbuísse nas bancadas de alguma empatia. Não, um estádio a abarrotar, os de Belém sacam de lenços brancos, milhares de lenços brancos e de sorriso nos lábios assim se despedem despedem do rival condenado ao escalão inferior.

A vingança, lá está, serve-se fria. Cinco anos depois, em 1982, é com lençóis que os de Alcântara festejam a despromoção do rival, nas barbas do próprio.

"O ultimo derby de que recordo foi o de 2011, um jogo quentinho, picante" conta Patrick Morais de Carvalho. A história do clube diz muito ao portuense de 48 anos. Atleta do FC Porto, desde sempre gostou do Belenenses por repartir com os portistas o seu ídolo de infância: Francisco González (Paco) avançado paraguaio, nascido em Itauguá.

A historia do Belenenses começa em setembro de 1919. Praticamente um ano depois de terminada a Primeira Guerra Mundial, em Belém sonhava-se com um clube desportivo que representasse os jovens do bairro. A existência de vários jogadores belenenses espalhados por clubes da capital prometia tarefa fácil. "Somos todos de Belém, porque havemos de jogar pelos outros?"- perguntava-se Artur José Pereira, figura chave em todo o processo, na altura com 30 anos.

"Alto, trigueiro, pernas fortes, ligeiramente arqueadas, brusco e com cara de poucos amigos", mas "terno e sensível" conquanto se desse melhor a conhecer (palavras do escritor e dramaturgo Romeu Correia publicadas no Record) Artur José Pereira, nascido em Belém em 16 de novembro de 1890, filho de pais pobres era considerado por muitos, à época, o melhor futebolista português de todos os tempos.

Finda a época de 18/19, o atleta deixou o Sporting Clube de Portugal no propósito firme de fundar um clube com o nome da sua terra: Belém.

Acácio Rosa, em "Historia do Clube de Futebol Os Belenenses" conta a história: " finda a época 18/19, Artur José Pereira perguntou (a um amigo sportinguista): " Achas que o Chico Stromp se zanga comigo se eu sair do Sporting para fundar um clube aqui em Belém?'". Abordado, o antigo capitão leonino terá respondido: "Diz a esse gajo que vá à merda e que funde o tal clube de Belém."

Artur José pereira, figura que encarna a mística do clube, fundou. Foi a 23 de setembro de 1919.

A escolha das cores do equipamento teve larga discussão na primeira assembleia geral do CF Os Belenenses e só depois de discussão acesa a cruz de Cristo ganharia à cruz de malta.

Seguindo o relato de Acácio Rosa, o novo clube provocaria 'despeitos", "até troça". Os primeiros tempos foram "difíceis, dizia-se que o clube estava condenado, viveria quanto muito três meses". Engano: o primeiro título chegaria na época 1925/26 . O Belenenses sagrar-se-ia Campeão de Lisboa, com a ajuda de um portentoso miúdo. Chamavam-lhe o 'rapaz da praia'. Ou Pepe.

Pepe, o cometa que passou pelo futebol nacional

Pepe, José Manuel Soares, durante cinco anos foi o ídolo do Belenenses, prova da raiz popular do clube. Reparador de máquinas no Arsenal da Marinha, conquistou lugar na seleção nacional, tal era o talento. Tinha apenas 18 anos. Com o recorde de golos num só jogo - 10 ao Bom Sucesso - Pepe era a alma de Belém, o representante dos mais pobres do bairro, o orgulho de ali ter nascido. Em apenas cinco conquistou o país.

A glória maior chegaria com a participação portuguesa nos Jogos Olímpicos de 1928. Numa convocatória de 12 jogadores, três eram do Belenenses. Um deles, naturalmente, Pepe. Faleceu prematuramente a 24 de outubro de 1931, com apenas 23 anos, em circunstancias estranhas. Intoxicação alimentar, falou-se na altura. Um cometa que passou pelo futebol nacional e deixou um rasto de talento e energia.

Do pau de Fio ao Restelo, passando pelas Salésias

Do campo Campo do Pau de Fio, ao campo do Lumiar, das Salésias, durante anos o melhor campo português, ao Restelo, inaugurado em 1956, o Belenenses foi ganhando títulos e estatuto de quarto maior clube português, logo depois dos chamados três grandes: Benfica, Sporting e FC Porto. A 26 de maio de 1946, viveu o momento mais alto do seu palmarés futebolístico, sagrando-se campeão nacional, feito que ainda não repetiu.

De Cascais ao operariado

De acordo com o anuário do futebol português, citado por Acácio Rosa, Portugal toma conhecimento do futebol graças aos irmãos Pinto Basto. Eduardo e Frederico, estudantes em Inglaterra, mal regressaram a Lisboa de pronto arregimentaram o irmão mais velho, Guilherme. "Em outubro de 1888, um grupo de rapazes de Cascais, centro aristocrático da época", e alunos do colégio Vilar, lançava um repto aos ingleses do Cabo Submarino, que tinham formado o Carcavelos Clube e levado para o seu team outros britânicos que trabalhavam em Lisboa". Repto aceite, a 22 de janeiro de 1889, defrontam-se no Campo Pequeno as duas equipas.

Fundado a 18 de setembro de 1942, fruto da fusão entre o Carcavelinhos Football Club e o União Foot-ball Lisboa (Santo Amaro) desde logo o Atlético Clube de Portugal foi prova viva da vitalidade do casamento da raiz popular de cada bairro com o movimento associativo, muito longe dos circuitos da elite.

Num país dominado pelos clubes de sempre, o Atlético foi uma lufada de ar fresco, contributo que mereceria a Oficial da Ordem Militar de Cristo (1951) e o estatuto de Instituição de Utilidade Pública, concedido em 1981.

Clube de Germano, somou 24 participações na divisão maior do futebol português. Em 1976/77 fez a última temporada entre os grandes. A partir daí, foi alternando entre o segundo e o terceiro escalão até baixar, depois de uma época triste na II Liga (2015/16), ao Campeonato de Portugal. Declarado o litigio com a SAD, a equipa B, formada em 2015/16 para competir nas divisões distritais, é agora a equipa do clube.

"Ainda nos falta ir à Tapadinha". Benfica, FC Porto, Sporting ou Belenenses temiam, conta Manuel Rodrigues. E era de temer.

Inaugurado em 23 de setembro de 1945, o Estádio da Tapadinha, com capacidade inicial para 10000 lugares, foi palco de jogos marcantes para a historia da modalidade. Um tempo em que o clube contava mais de 15 mil sócios. "O desmantelamento do tecido industrial e a construção da ponte, ajudaram a desertificar o bairro", explica Ricardo Delgado. Hoje, a Tapadinha está reduzida a 4 mil lugares.

Ricardo Delgado, presidente do Atlético desde maio de 2017 nasceu, viveu e estudou em Alcântara. Foi atleta do clube. Aceitou o desafio proposto pelo presidente rival "com todo o gosto". Porque a rivalidade faz bem.

Tornar o clube eficiente e moderno, desportiva e financeiramente, é o objetivo da direção do Atlético.

Por seu lado, Patrick Morais de Carvalho, "ainda com o problema SAD por resolver completamente" afirma-se " estupefacto" com a passividade da Liga de Clubes e da Federação Portuguesa de Futebol. "Imaginem se o que aconteceu com o Belenenses acontecesse com o Benfica, ao FC Porto ou ao Sporting?", provoca.

Outros clubes seguirão as pisadas do Atlético e do Belenenses. Por isso, garante Ricardo Delgado, "o governo vai ter de prestar mais atenção ao que se está a passar com as SAD".

Morais de Carvalho reforça o mal necessário que foi a cisão com a SAD: "Nunca nos passou pela cabeça estar nesta situação. Até 2012, fomos nós que fizemos aquela equipa, a equipa era nossa. Entristece-me muito, mas para que o mal triunfe basta que as pessoas de bem fiquem de braços cruzados".

Ambos concordam: os tempos que aí vêm não são fáceis e porão à prova os dois rivais.

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