Past Lives - o hype dos Óscares de... 2024

Uma história com pontes entre a Coreia e a América. <em>Past Lives</em>, primeira obra de Celine Song é a única não estreia mundial em competição e quer ser o novo<em> As Pontes de Madison County</em>. Mas em Berlim há ainda Massimo Troisi redescoberto, erotismo com desejo feminino, o charme próprio de Michael Cera.
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Há ecos na imprensa americana a apontar Past Lives para ser um dos filmes possíveis na temporada dos prémios de 2024. Depois do sucesso no Festival Sundance, este drama romântico chega à competição da Berlinale com uma impecável máquina de publicidade da A24, especialmente apontada em fazer estrela a sua realizadora estreante, Celine Song, conhecida por ter escrito o argumento da série A Roda do Tempo.

Tal como o mais completo Minari, de Lee Isaac Chung, fala do sentimento dos emigrantes coreanos nos EUA, nomeadamente a história de uma jovem dramaturga que volta ao contacto com o namorado da infância passados muitos anos. Quando ele, já trintão, a vem visitar a Nova Iorque, surge um clima de romance, mesmo sendo ela já casada com outro escritor. Song parece estar a querer fazer um novo clássico romântico à imagem de um As Pontes de Madison County, embora os moldes sejam bastante ancorados numa metodologia do chamado "filme indie". Lembrando o aforismo popular, o "primeiro amor nunca nos larga", é composto um caso de afetos e atração subterrânea. Um romance tão platónico como "impossível" gerido com uma ternura no limiar do místico e aludindo a princípios budistas que sugerem práticas de reencarnação e outros sinais do destino relacionados com as "vidas passadas" do título. A realizadora tem claramente uma admirável serenidade a construir os tempos dos diálogos e a nunca sair dos eixos do melodrama romântico mais subtil. E filma o que sabe: as memórias de Seoul e a Nova Iorque que é sua por um olhar que escapa ao postal turístico, inclusive quando os dois quase amantes coreanos visitam a Estátua da Liberdade.

Em vez de ser um adeus à linguagem entre as diferenças culturais e de língua do inglês e coreano, Past Lives é um olá à linguagem, tecido com uma verdade íntima muito própria das personagens. Pode ser que seja exagero embandeirar em arco, mas a beleza do filme passa muito por uma nostalgia romântica que é perfeitamente identificável e que devolve ao "filme romântico" um efeito de blues. A dada altura, a dama dividida toca no essencial: diz que discute com o marido americano porque as raízes de ambos chocam no vaso em que estão. É uma metáfora que prova ao que o filme vem: abordar a questão das raízes.

Outro dos bons filmes da competição chama-se Someday We"ll Tell Each Other Everything e é de Emily Atef, berlinense que tinha assinado um biopic de Romy Schneider, 3 Days in Tiberon, objeto selecionado para Berlim mas que nunca chegou comercialmente a Portugal. Agora, pega na inspiração de Dostoiévski e propõe um romance erótico e proibido na Alemanha de Leste dos anos 1990, logo após a reunificação. Um romance entre uma jovem de 19 anos e um agricultor com o dobro da sua idade. Torna-se bem curioso a forma como a câmara de Atef assume o "female gaze" nas cenas de sexo, algumas delas prodigiosamente coreografadas. Uma utopia campestre que pode ser uma alternativa a Lady Chatterley e que enceta uma conclusão: o desejo sexual pode ser amor. Amor ou obsessão. No meio de tudo isto, a literatura a servir de isco...

Na Berlinale Speciale, outro documentário que toca e que nos deixa de rastos: Lá em Baixo Alguém Gosta de Mim/ Laggiù Qualcuno mi Ama, de Mario Martone sobre e para Massimo Troisi, o ator que ficou imortalizado em O Carteiro de Pablo Neruda. Um registo sobre a vida e obra de um génio da comédia napolitana que aqui é revisto como cineasta de eleição e homem de coração fraco (morreu um dia a seguir à rodagem de Il Postino). Martone entrevista amigos, fãs e a sua colaboradora e grande amor, Anna Pavignano, para tentar perceber as diferentes faces de um génio que mudou para sempre um certo cinema italiano. Portanto, um filme de admirador onde tudo é muito íntimo e pessoal, mas sempre transmissível, sobretudo a forma como o cineasta de Nostalgia (a estrear esta semana em Portugal) filma as gravações e as cartas de Troisi. Não é para todos. Grande momento deste arranque do festival.

Na secção Encontros, um dos raros americanos: The Adults, de Dustin Guy Defa, sobre três irmãos que se voltam a encontrar depois de uma considerável ausência para descobrirem que têm síndrome de Peter Pan. Três adultos que não conseguem sair da zona de infância numa cidade que os encanta e os deprime ao mesmo tempo. Uma comédia docemente tristonha que serve também para nos lembrar do talento do seu protagonista, Michael Cera.

No Mercado, de assinalar a presença já com poster do novo filme de Tiago Guedes: Diálogos com Leucó: Diálogos depois do Fim, a partir de Cesare Pavese, ao que tudo indica a obra mais radical do cineasta de A Herdade, inteiramente rodado nos Açores e com um elenco para meter respeito: Nuno Lopes, Albano Jerónimo, João Pedro Mamede, Adriano Luz, Iris Cayatte, Victoria Guerra, Joana Ribeiro, Isabel Abreu e tantos outros. É bem provável que possa vir a estar presente no Festival de Cannes ou Locarno...

dnot@dn.pt

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