Passos perdidos
Há semanas, um amigo que também é amigo de um ex-presidente do PSD jurou-me, durante o jantar, que o partido não aguentará nova liderança falhada. Por gentileza, perguntei-lhe qual dos plausíveis líderes evitará o falhanço. Ele revirou os olhos, acabou o copo de vinho, acendeu um cigarro e, num ápice, a conversa reverteu para a chuva que não acaba.
Um destes dias, talvez acabe o PSD. Por regra, a principal força da oposição cresce, simbólica e eleitoralmente, em função do declínio da força no poder. Ao não retirar qualquer benefício da decomposição acelerada do Governo, o PSD actual conseguiu a proeza de implodir essa lei tácita. Dadas as alternativas, o PSD futuro ameaça proezas ainda maiores.
A alternativa confirmada chama-se Pedro Passos Coelho. As alternativas presuntivas chamam-se Aguiar-Branco, Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Rangel, Santana Lopes e um longo elenco de secundários. Passos Coelho tem a vantagem de possuir bons apoios na área política do PSD e a desvantagem de possuir óptimos apoios no PS, o que lança relativo mistério em volta das reais intenções de "mudança", o tema do seu recente livrinho ("Não foi inspirado por Obama", garantiu). Os restantes, e eventuais, candidatos têm a vantagem de não querer ser Passos Coelho e a desvantagem de ninguém perceber ao certo o que, fora esse louvável feito, eles de facto querem.
Tudo somado, eis o problema, de resto já admitido por Marques Mendes: há demasiados anos que a luta pela chefia do PSD se esgota em si mesma. Perdidos em remoques codificados para consumo interno, os concorrentes ao cargo aparentemente esqueceram-se de que em redor do partido existe um país, ou no mínimo um eleitorado potencial que não se reduz à militância e não está exactamente fascinado pelo cisma bases/barões ou pelos múltiplos grupinhos, alguns de um solitário elemento, em que o partido se decompõe, pelos vistos literalmente.
É possível que a próxima fase da decomposição seja a eleição de Passos Coelho, não graças ao vazio algo egocêntrico do discurso mas à falta de comparência. Pelo menos à comparência de um adversário a sério, sem nódoas de fracassos passados e com propósitos um bocadinho mais abrangentes do que meramente impedir a vitória de uma réplica, no sentido sísmico, do eng. Sócrates. Por isto e por aquilo, o único nome que me ocorre é o de Rui Rio, que não entra nas contas correntes. Talvez Rio espere o seu momento, embora se arrisque a que o PSD, sob ameaça de implosão ou irrelevância, não espere por ele. Se o PSD não se interessa pelo País, porque haveria o País de se interessar pelo PSD?
O emprego da drª Helena
O maior atributo do actual Governo é a originalidade. Depois de, há dias, um ministro das Obras Públicas ter finalmente explicado a serventia do TGV (transformar Lisboa na praia de Madrid), agora a nova ministra do Trabalho ilumina-nos com uma previsão certeira sobre o desemprego, "um problema que", cito, "provavelmente vai continuar a subir antes de descer".
Note-se que, até à erupção da dr.ª Helena André, a polémica em volta do tema imperava. Entre o caos opinativo, havia palpites de que o desemprego estagnaria, ou jamais voltaria a descer, ou desceria às terças e quintas, subiria às segundas e quartas e descansaria às sextas, de modo a passar o fim-de-semana em casa. Felizmente, a dr.ª Helena não entra em tolices e opta pela lógica irrefutável, que merece bis: o desemprego "provavelmente vai continuar a subir antes de descer".
É verdade que a ministra não arrisca uma data para a inversão da tendência, logo a descida poderá ocorrer depois de amanhã ou em 2025. Enquanto isso, a governante sugere que dediquemos aos números do desemprego "um olhar refrescado". Amavelmente, a dr.ª Helena deixa a interpretação da directiva oftalmológica ao nosso cuidado.
Podemos, por exemplo, calar as lamechices e começar a invejar a situação dos 11 por cento de ociosos, os quais dispõem enfim de tempo livre para a reflexão existencial ou a bricolage. Podemos achar positivo que ainda haja 89 por cento da população activa com ocupação. E podemos largar as comparações face à generalidade dos países da UE e comparar os dados nacionais com os da Serra Leoa.
Só os ministros que temos não se comparam. Nem os 600 mil desempregados "oficiais" com as incontáveis hordas não registadas ou distraídas pela prestigiada "formação" proporcionada pelo Governo, cuja extravagância já subiu o que tinha a subir antes de se estatelar ao comprido.
Doidos à solta
Uma pessoa dá um desconto quando Ali Agca, o turco que tentou matar o Papa em 1981, sai da cadeia a dizer que é o Messias, que o fim do mundo acontecerá antes do final do século e que a Bíblia será aperfeiçoada por ele próprio. Afinal, diversos testemunhos confirmam que a criatura nunca exibiu grande sanidade.
Mas o que pensar quando Hugo Chávez, através de um site governamental, atribui o sismo no Haiti a uma experiência da Marinha americana, a qual, assegura-se, dispõe de uma coisa chamada "armas de terramotos"? É verdade que, em Portugal, um ex-presidente da República também culpou George W. Bush pelo tsunami no Pacífico. Porém, a afirmação foi atenuada pela idade e pela reforma. Chávez é relativamente jovem e um estadista em funções. Resta apurar se é um demente.
Ao contrário do que sucedeu com o sr. Agca, dificilmente se sujeitará o presidente venezuelano a uma junta psiquiátrica que lhe teste o grau de toleima. E é pena. Sobretudo porque Chávez conta com uma vastíssima legião de admiradores internacionais que abençoam as suas políticas e o apontam como exemplo a seguir. E das duas, uma: ou o homem é realmente maluquinho e a veneração global é simulada, caridosa e profilática (não se deve contrariar gente assim), ou o homem não é maluquinho e apenas profere atoardas de modo a satisfazer os apetites dos fiéis. Neste caso, doidos seriam os fiéis. Pior que tudo, alguns circulam por aí, nos cafés, nas repartições, nas universidades e nos lugares de influência política.
Claro que, por puro egoísmo, prefiro a primeira hipótese: mil vezes a Venezuela submetida a candidatos ao hospício do que um hospício do tamanho do mundo, onde os pacientes andam sem trela, tranquilizantes ou ao menos uma tarjeta identificativa. Infelizmente, não me compete escolher.
Memórias da escravidão
Deus me livre de me interessar pelo que acontece nos balneários masculinos ou de objectar ao direito de dois adultos trocarem tabefes. Porém, achei curioso o comunicado oficial do Sporting sobre os tabefes repartidos entre dois funcionários seus, um sempre referido como "Ricardo Sá Pinto" e o outro como "o jogador Liedson".
Por cá, e não somente por cá, impera o estranho hábito de tratar a maioria dos futebolistas por um único nome ou, com frequência, uma alcunha (se forem brasileiros o nome e a alcunha não se distinguem). A estranheza prossegue quando, e se, os futebolistas terminam a primeira carreira e arranjam uma segunda em cargos administrativos ou técnicos: nesse momento, adquirem imediatamente uma graça adequada à gravitas do posto. Sá Pinto, que já nem se podia queixar, ganhou o usufruto de "Ricardo". Domingos, de "Paciência". Inácio, de "Augusto". Chalana, de "Fernando", etc. É muito raro um director desportivo chamado singelamente Neno ou um treinador Toni (e não me venham com as excepções óbvias a julgar que desmancham a tese).
À parte a Inglaterra, onde os jogadores têm nome e apelido e os dirigentes são quase anónimos, a importância que em inúmeros países se dá ao futebol é inversamente proporcional à que merecem os respectivos praticantes, que apenas concorrem à dignidade após a reforma das chuteiras. Houve um tempo em que esse estatuto secundário era lei, e os futebolistas propriedade dos clubes, que lhes orientavam a vida, incluindo a sentimental. Hoje, o profissionalismo pleno e a liberdade contratual mudaram muitas coisas, mas a visão do jogador enquanto criança grande ou besta pequena que entretém as massas ficou. Por famoso que seja, um só nome devolve o jogador ao seu lugar, embora convenha acrescentar que nem três nomes garantem o lugar de um seriíssimo ex-jogador. O desfecho dos tabefes no Sporting provou-o: ninguém paga bilhete para assistir a uma exibição de seriedade.