Passos académico ou como a espuma foge dos temas que importam

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Durante uns dias, as redes sociais (logo também a comunicação social) andaram muito comocionadas com o anúncio de que o anterior primeiro-ministro ia dar umas aulas no ISCSP como professor catedrático convidado. Ora, um ex-governante colaborar numa universidade pública nem deveria ser notícia (por exemplo, a colaboração de Paulo Portas com a Nova SBE não ofereceu grande ruído público), muito menos ser objeto de enorme polémica. É absolutamente natural que uma escola na área das políticas públicas queira a colaboração de alguém que foi primeiro-ministro. Quer para os seus conteúdos letivos (uma matéria para reflexão dos órgãos próprios da escola) quer como cabeça-de-cartaz para atrair alunos num mercado de licenciaturas e mestrados cada vez mais competitivo (para mais numa escola com uma forte ambição de afirmação interna e sem uma forte componente internacional). E, sendo um ex-primeiro-ministro (eleito democraticamente), merece evidentemente um lugar condigno. Muitos alimentaram uma enorme confusão entre catedrático (professor doutorado, agregado e concursado) e catedrático convidado (professor convidado com equiparação e salário de catedrático por decisão dos órgãos da escola). Por maldade ou por total desconhecimento, certamente, pois nunca o ex-primeiro-ministro poderia estar na tal famosa "carreira académica" quando não tem habilitações literárias, nem competência científica para tal. Contudo, é um ex-primeiro-ministro, pelo que faz todo o sentido que seja um professor convidado ao nível de catedrático, se os órgãos científicos do ISCSP assim o legitimamente entenderem.

O debate nas redes sociais feito pelas claques obedece a lógicas sectaristas e não a preocupações de rigor. Pensemos na hipótese de alguma universidade portuguesa remunerar a colaboração de José Sócrates e os argumentos invertem-se imediatamente. Basta lembrar a defesa que a esquerda fez dos seus livros alegadamente académicos. Ou das aulas de Manuel Pinho em Columbia, com o alto patrocínio da EDP. Recordemos a forma como a direita criticou a contratação de Mário Soares pela Universidade de Coimbra nos finais dos anos 1990 (e então não existiam redes sociais para magnificar o ruído). Ou os comentários absolutamente boçais sobre a recente eleição de Maria de Lurdes Rodrigues para reitora do ISCTE. E podemos trazer à colação as histórias das licenciaturas de Sócrates e Relvas para observar como as claques inverteram posições (porque, claro, são episódios completamente distintos). Portanto, o debate mediático está dominado pelo preconceito sectarista. Infelizmente. Infelizmente, porque precisamente o ruído das redes sociais contagiou a comunicação social e impediu qualquer reflexão minimamente relevante para o futuro. Infelizmente, porque a história da contratação de Passos Coelho pelo ISCSP poderia e deveria fomentar o debate sobre dois assuntos importantes.

O primeiro tema é o tratamento digno que a República deve dar a quem foi escolhido pelos portugueses para chefiar um governo. Arrumou-se a questão dos ex-Presidentes da República, aliás de forma bastante generosa. Mas os ex-chefes do Governo ficaram sem solução. Enquanto foram oriundos de outras carreiras (académica, militar, funcionário público, comunicação social, advocacia) para lá voltaram. A questão começou com a mudança geracional e a chegada ao poder de profissionais da política (Durão Barroso, Santana Lopes, Sócrates, Passos Coelho). Sem soluções à italiana (um ex-primeiro-ministro seria um senador vitalício devidamente remunerado) ou à espanhola (ex-primeiro-ministro seria membro permanente de um órgão consultivo legislativo do governo, como é o Conselho de Estado espanhol), a solução portuguesa foi não fazer nada e deixar estes antigos protagonistas "andarem por aí".

Aliás, aplicaria a mesma reflexão ao líder da oposição. A República portuguesa, ao contrário dos ingleses ou dos alemães, decidiu não ter uma posição formal de líder da oposição. Mais uma vez a solução "andarem por aí" serve. Serve no "durante", pois o líder da oposição simplesmente não tem qualquer relevância no funcionamento do Estado. Serve no "depois", na exata medida em que não se cuida de assegurar a dignidade de quem desempenhou essas funções. Uma República que não preza os seus titulares também não é prezada pelos cidadãos. Agora, no meio do descontentamento generalizado com a classe política, é impossível retificar o mal que foi feito. E como a próxima geração é ainda mais carreirista, o problema vai inevitavelmente agravar-se.

O segundo tema é a obsessão da classe política pela legitimação intelectual proporcionada pela universidade. A vida académica. O catedrático brilhante. O senhor professor. O uso compulsivo dos títulos académicos. Depois, claro, aparecem as perversões. Os diplomas académicos falsos. Os livros académicos encomendados a terceiros. Os mestrados sonantes vazios de conteúdo. Os visiting scholars que nunca visitaram coisa nenhuma. E por aí fora. A razão parece-me óbvia - somos governados por génios e os génios são doutores (por extenso). Andamos assim há 120 anos. Quando deixámos o mundo dos aristocratas e dos heróis militares, transitámos pela Monarquia dos barões e passámos à República dos doutores. E tivemos Afonso Costa, Salazar, Caetano, Cavaco. Os tais que sabem tudo e ensinam aos outros, os menos afortunados de intelecto. Consequentemente, a enorme confusão tem sido alimentada, geração após geração, por quem procura na universidade uma qualquer legitimidade intelectual para a vida pública. Noutros tempos, a universidade dava quadros à política (até porque havia pouco capital humano fora da universidade). Agora, no auge dos políticos profissionais, estes querem à força ser académicos depois da vida política. Se isso melhorou a vida política portuguesa, tenho dúvidas. Que isso fez bastante mal à universidade portuguesa, nomeadamente às Ciências Sociais, ao Direito, às Humanidades, parece-me evidente há muito tempo.

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