A frase vem num dos livros da quase centena que Balzac dedicou à Comédia Humana. E é dita pelo personagem Eugène de Rastignac, gigolô e futuro ministro, provinciano fascinado pela capital (como tantos, nascido em qualquer lugar incivilizado do mundo, de Idanha-a-Nova a Londres, e acabado de chegar à cidade, à cidade!, e esta só podia ser uma, Paris). Numa tarde, do alto do Cemitério de Père Lachaise, depois de enterrar o Père Goriot, Rastignac olhou a cidade do seu fascínio e cunhou a frase: "Agora é connosco, eu e tu, Paris.".A frase poderia ser dita também por Julien Sorel, o herói de O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Porque Stendhal, como Balzac e Hemingway e Sommerset Maugham e Miller e Simenon e Duras, escritores que um dia subiram a Paris, atraídos pela mesma ânsia que iriam emprestar aos seus personagens: deixar-se levar por Paris. O espanhol Enrique Vila-Matas não se cansa de dizer que lhe valeu mais que um prémio literário ter vivido num quarto de águas-furtadas parisiense, sobre o apartamento de Marguerite Duras. Se fosse o de Marguerite Yourcenar seria o mesmo, ou, décadas antes, o do poeta Ezra Pound... O que conta é o eterno, o não sei o quê, que Paris tem, teve, terá..Paris Nunca se Acaba (2003) é o título de um livro de memórias de Vila-Matas. A capa, na edição portuguesa (Teorema), é uma foto, a preto e branco, de um velho de chapéu, de costas, a ler os jornais de um quiosque parisiense que o barão Haussmann, além dos boulervards largos que traçou, fez marca de Paris. A foto é do português Gérard Castello-Lopes, falecido em Paris, em 2011, outro parisinodependente (no caso, não escritor, mas fotógrafo). Um dia, Paris iluminou-os e passaram a vida a reabastecer nessas imagens..Quem desce da Praça Contrescarpe pela Rua Cardeal Lemoine, logo à esquerda, encontra um magote de gente. A porta azul tem encimado o número 74 e está fechada a curiosos. Daí os pescoços esticados para a janela do 3.º andar. Há um século quase exatos, 1922, Hemingway vivia ali com a sua primeira mulher, Hadley. O americano conta que descia para comprar leite do rebanho de cabras que chocalhava pela rua abaixo. No prédio em frente, de um segundo andar, pende até ao passeio uma garrafa de plástico: ouve-se da janela a litania cantada por um velho, talvez acamado, a pedir esmola, a sua parte da antiga glória vizinha..Em Paris É Uma Festa, obra póstuma, Hemingway retira um bocado de fama àquele apartamento. De facto, não era ali que ele escrevia mas noutro quarto, umas águas-furtadas, que alugara "num prédio onde morreu Verlaine", ali perto, na Rua Descartes, número 39. Em Paris borbulham nomes de escritores, de passagem ou estada longa... De facto, o poeta Verlaine morreu ali, há placa e o restaurante térreo até se chama Maison de Verlaine..Dois passos adiante, é a Rua Tournefort, morada da casa editorial Chandeigne, onde se publica Portugal, muito e bom, e grandes autores como Pessoa e Aquilino. Um pouco mais abaixo, nessa rua, na porta 24, Balzac fixou lá a Pensão Vauquer, onde viveram na imaginação balzaquiana os já citados personagens Père Gauriot e Rastignac. O nome do estabelecimento foi inventado mas, mais tarde, naquela porta existiu mesmo a Pensão Crouzet, que tinha esta tabuleta: "Pensão burguesa para os dois sexos e os outros". Nunca faltaram histórias em Paris para alimentar os seus maiores fãs, os escritores..As Éditions Chandeigne republicaram em 2000 o Romance da Raposa, de Aquilino Ribeiro. Simpatizante anarquista, ele fugira para Paris, em 1908, depois do atentado que matou o rei D. Carlos. O belo livro infantil é ilustrado pelo desenhador Benjamin Rabier (sim, conhecem-no, é o inventor do sorriso mais famoso do mundo, o de La Vache Qui Rit) e foi escrito e publicado em França em 1924. Mas o primeiro quarto de Aquilino em Paris, em 1908, foi na já referida Rua Descartes, número 13, e ficava, como ele escreveu, "frente à casa de Verlaine". Temos assim, pelo menos, "à nous cinq Paris". Na rua de nome do filósofo Descartes, há o prédio do poeta Verlaine e de Hemingway e, à frente, o quarto do Aquilino das berças beirãs. E a envolver essa academia, Paris. E quantas mais, cidade fora?.O precioso livro Les Portugais de Paris, também da Chandeigne (2009), ajuda-nos a fazer um itinerário quase exaustivo também dos nossos escritores de passagem, ou mais, por Paris. O abade Faria não escreveu mas marcou a literatura: a sua prisão na ilha de If, no golfo de Marselha, inspirou Alexandre Dumas para O Conde de Monte Cristo. Goês, padre e revolucionário, abade Faria, personalidade famosa na Paris da Revolução, morou na Rua Ponceau, obscura e de prostituição, e foi precursor da hipnose nos salões mundanos e nas academias..Pouco antes, na segunda metade do século XVIII, o médico Ribeiro Sanches, autor de artigos iluminados para a Encyclopédie, aconselhava nos seus Traités d"hygiène a que por cama, no Hôtel-Dieu, o mais antigo hospital de Paris, só houvesse um doente, e não quatro e oito... O Hôtel-Dieu ainda lá está, na Île-de-France, ao lado da Catedral de Notre-Dame, seguindo, espera-se, os velhos conselhos do sábio Ribeiro Sanches, tão úteis em tempos de pandemias..E, antes ainda, o padre António Vieira, numa igreja dos dominicanos, no Boulevard Saint-Germain, e, muito depois, Antero de Quental, tipógrafo do jornal Le Siècle, republicano. E Eça, que lá foi cônsul, inventando o número de porta 202, que não existe nos Champs-Élysées, para lá pôr Jacinto de Tormes a ver modernidades, banqueiros e boémios, para melhor dar-lhe saudades e regressar à serranias pátrias (A Cidade e as Serras). E o poeta Sá-Carneiro que no parisiense Hotel de Nice, 29, Rua Victor-Massé, numa manhã de 1916, se vestiu com primor, tomou estricnina e acabou na fossa comum. E Almada Negreiros que viveu, em 1919-20, outro centenário quase perfeito, numa mansarda da Notre-Dame-de-Lorette, rua onde nasceu o pintor Gauguin. E onde, porque isto está tudo ligado, Almada foi amigo do pintor Amadeo de Souza-Cardoso....Passeios literários demasiado caseiros, dirá o leitor. Está certo, abra a porta do 12, Rua de l"Odéon e sinta-se como outros clientes passados (desses, dos frequentes) que já fizeram o mesmo na livraria Shakespeare and Company: Hemingway, Pound, Scott Fitzgerald, Larbaud, Gide, Valéry... Mas o melhor é não ser preguiçoso. Entre 536 ótimas escolhas possíveis, pegue no livro Uma Vida à Sua Frente (La Vie devant Soi) e passeie-se por um daqueles bairros do norte, Belleville, onde as montras têm fatos berrantes e elegantes como só os alfaiates de Brazzaville ousam fazer..No livro, há Madame Rosa, judia gorda que escapou a Auschwitz e antiga prostituta. No livro, ela toma conta de Momo, miúdo de fronteiras perdidas, de pais chegados a Paris sem saber dizer "à nous deux Paris!" e desapareceram, deixando um novo parisiense encalhado. Tire os olhos do livro e olhe à volta, pela Rua Saint-Denis e pelo Boulevard Sébastopol, e verificará que, se já não há velhas judias escapadas a Auschwitz, há Paris. Velhas gordas e miúdos perdidos. Volte ao livro, na capa o nome do autor: Émile Ajar. Nome falso, não interessa. O nome é Romain Gary, aliás, pseudónimo, um herói da Libertação de França, embaixador, pedante com gosto de fardas pomposas, de caneta sensível e antigo russo, ou lituano, ou polaco....Enfim, Paris, misturando o mundo. Por isso o mundo vai lá para se encontrar..