"Ficávamos todos num quarto, em beliches, e no inverno ficava mesmo muito frio. À noite não conseguíamos aquecer, alguns ficavam doentes, mas mesmo assim tínhamos de jogar, era um pesadelo. Só comíamos duas refeições por dia, ao meio-dia e à meia-noite." Esta é uma parte da história de Thibedi Ramu, um jovem sul-africano que em 2014 chegou a Portugal com o sonho de se transformar numa estrela do futebol. A experiência não correu bem, prometeram-lhe que iria mostrar as suas qualidades num clube da I ou II Liga, mas acabou por ser colocado no Estrela de Portalegre, onde durante um ano andou pela I Divisão Distrital..Foi o choque com uma realidade e um negócio que está a aumentar em Portugal e em que existe uma vítima e dois vencedores: o jovem atleta a quem são prometidos contratos que nunca se concretizam; o angariador e o clube que recebem dinheiro da família do aspirante a futebolista que chega a Portugal, normalmente vindo do Brasil, Argentina ou de países africanos, com o visto de curta duração (mais conhecido como de turismo e que não permite a assinatura de contratos de trabalho) e que, passados 90 dias, fica ilegal, pois não consegue um contrato e acaba, por norma, por ser abandonado pelo empresário..Nos últimos anos, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras tem efetuado diversas operações de fiscalização em clubes e associações desportivas, na sua maioria ligadas ao futebol. E os resultados mostram um aumento de casos de aspirantes a futebolistas em situação ilegal, depois obrigados a deixar o país num prazo entre dez e 20 dias após serem detetados. Em 2018, os inspetores do SEF encontraram 129 cidadãos estrangeiros em situação ilegal, uma subida superior a 100% comparando com os 59 aspirantes a atletas fiscalizados em 2017..Nos primeiros dois meses deste ano, nas 34 operações efetuadas já foram encontrados 47 estrangeiros que faziam parte de plantéis de futebol sem qualquer tipo de autorização para estar em Portugal. E neste momento estão em curso, segundo fonte do SEF, oito investigações envolvendo associações desportivas ou clubes de futebol, ações essas relacionadas com a exploração dos atletas que tentaram o sonho de jogar na Europa..Cinco mil euros para vir para Portugal."Diria que esses dados pecam por escassos. A única medida que temos é a ação do SEF, mas obviamente não fazem só isto. Portugal é do ponto de vista geográfico muito estratégico para a entrada de talentos na Europa. E os clubes aceitam fazer de barrigas de aluguer. Além disso, a nossa estrutura desportiva tem características que potenciam o fenómeno, nomeadamente as dificuldades financeiras dos clubes, a fiscalização deficitária, a entrada de investidores estrangeiros sem qualquer escrutínio e, sobretudo, a opacidade das operações financeiras", alerta Joaquim Evangelista..O presidente do Sindicato dos Jogadores tem acompanhado esta realidade e conhece a existência de "redes organizadas, angariadores que vão buscar os jogadores, por norma de famílias humildes, criando expectativas de que já têm um clube e um contrato de trabalho. Passados alguns dias, deixam de ter condições e começam os dramas". Segundo este dirigente, os empresários cobram entre dois e cinco mil euros a cada jovem - desta verba pagam uma percentagem ao clube nacional com o qual têm acordo - e depois, se este não tem qualidade para integrar uma equipa, deixam-no à sua sorte. "No Carregal do Sal, o presidente do clube disse que os atletas aceitaram a situação. Não podemos pactuar com isto", sublinha. Recorda que "no Algarve um clube tinha 11 jogadores em situação ilegal. Estamos a falar de jovens com 18 anos que estão a formar a personalidade. Estas situações criam danos pessoais graves"..Os casos detetados pelo SEF aconteceram um pouco por todo o país - neste ano já houve fiscalizações nos distritos de Porto, Braga, Bragança, Aveiro, Leiria, Coimbra, Santarém, Évora, Faro e Ponta Delgada - e na maioria são em clubes dos escalões distritais.."Há muitos casos em que os atletas são mantidos em condições indignas. Vivem em instalações onde dormem cinco ou seis num quarto, sem colchões. E a alimentação também não é a adequada para um atleta", conta ao DN um inspetor que segue este fenómeno e que sublinha a atitude pedagógica do SEF em muitos casos.."O sonho, muitas vezes, acaba logo ali, mas há quem venha iludido pelos empresários, que prometem a regularização que não acontece. São abandonados e em situações que enquadramos no tráfico de seres humanos", conclui, lembrando que os clubes ficam sujeitos a multas que vão dos dois mil aos 90 mil euros, dependendo do número de atletas em situação irregular detetados..Nessa altura, procuram ajuda no sindicato para regressar a casa ou acabam por ficar ilegais. No caso de Ramu, que ainda jogou em dois outros clubes antes de deixar o país, este contou ao sindicato como lidou com a sua má sorte: "Nunca se pode deixar de sonhar. O momento em que deixas de sonhar é aquele em que desistes." Agora está a procurar esse sonho fora de Portugal..Mais sanções.Até 25 de maio, os sindicatos dos jogadores portugueses e brasileiros querem publicar um manual com conselhos para os atletas que venham para Portugal. Para já, o sindicato quer clubes e dirigentes punidos com suspensão de atividade e multas sempre que contratem um jogador em situação ilegal..PENALIZAR DIRIGENTES O Sindicato dos Jogadores vai apresentar uma proposta numa próxima assembleia geral da Federação Portuguesa de Futebol para que os dirigentes e os clubes ou sociedades desportivas sejam punidos quando o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras detetar atletas em situação irregular. A ideia do sindicato é que o regulamento disciplinar desportivo passe a contemplar a suspensão (por tempo a determinar) e multas a quem esteja envolvido no recrutamento ou inscrição de jogadores em situação ilegal. E se houver situações de reincidência esses valores ou tempo de suspensão deverão ser agravados. Para já, o documento vai ser apresentado num grupo de trabalho que junta o SEF, a Liga de futebol, a FPF e o sindicato. Atualmente, quando uma situação irregular de um atleta é detetada o clube incorre numa coima que varia entre os dois mil e os 90 mil euros..MANUAL COM ALERTAS Os sindicatos que representam os futebolistas em Portugal e no Brasil estão a trabalhar num documento que pretende servir de alerta e de aconselhamento aos candidatos a jogadores que pretendam vir para o nosso país. Esse manual deverá ser apresentado até ao final de maio..NÃO DAR DOCUMENTOS Como explicou ao DN Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores, o documento terá duas vertentes: os cuidados a ter antes de sair do Brasil e depois quando chega a Portugal. "Quando são abordados por um agente, têm de procurar saber quem ele é; fazer pesquisas na net; devem ligar para o clube; só pagar ao agente depois de assinarem o contrato de trabalho; nunca dar os seus documentos a terceiros, pois podem ficar reféns [dessa pessoa]; pedir a proposta de contrato no seu idioma para perceberem o que vão assinar e contactar os sindicatos dos jogadores ou as autoridades", são alguns dos conselhos que vão surgir no manual..Artigo publicado originalmente na edição do DN de 9 de março