Partilhar um táxi e os meus dedos dos pés
Enquanto atravessava a Ponte de Brooklyn num táxi, um homem que eu mal conhecia chupava-me os dedos dos pés. As luzes da ponte brilhavam por cima de mim e Manhattan era um reino encantado que diminuía de tamanho atrás de nós na escuridão do espelho retrovisor.
Semideitada numa posição desconfortável, sentia-me estranhamente desligada do meu pé. É curioso ver alguém envolvido num ato de paixão erótica e não sentir nada. Bom, não era exatamente nada. Sentia uma leve emoção, não de excitação física, mas de alguma efervescência do meu espírito de aventura. Uma mancha de luzes refletia-se no rio East. As rodas voavam sobre o alcatrão e o meu corpo vibrava no espaço.
Chegou o momento!, pensei. A minha vida aqui já começou.
Eu tinha-me mudado para Nova Iorque com 30 e muitos anos em busca de uma vida mais glamorosa. O que é que me trouxe até este momento? O fracasso. Uma vida moldada por escolhas seguras.
Tinha feito uma pós-graduação em literatura e os meus sonhos passavam por um ordenado certo, a segurança da efetividade e uma sólida casa vitoriana nas proximidades do campus. Casar-me-ia com um colega professor, teria dois bonitos filhos e cairia nas rotinas previsíveis do ano letivo. Ansiava por uma vida que não fosse perturbada pelo risco, pela rebelião ou por uma paixão ofuscante. Mas não consegui arranjar emprego como professora.
Quando eu tinha 18 anos, Nova Iorque era o máximo para mim. Ao visitar a cidade pela primeira vez soube que queria viver aqui. Era uma verdade que eu sabia com a clareza de todas as verdades. Viver em Nova Iorque era viajar pelo mundo sem sair do mesmo sítio.
Enquanto caminhava pela Union Square, um caleidoscópio da humanidade girava à minha volta: uma mulher a passear seis cães, um homem a segurar um volante como se estivesse a conduzir um carro invisível, um grupo de musculosos bailarinos de break dance a exibir proezas de circo. O meu corpo era uma coleção de partículas em movimento de Walt Whitman, misturadas com partículas em movimento - não havia fim para mim nem início para os outros. Era um sensual canto de sereia para a minha alma.
As especificidades do meu sonho eram um cliché constrangedor e impensável: eu queria estar no palco. Queria expressar a emoção pura à frente de centenas de pessoas. Percorri furtivamente as páginas de Backstage, como se fosse um panfleto pornográfico do século XVIII, mas nunca dei voz ao meu desejo. Desisti da coisa que mais queria sem tentar sequer.
Avancei e vesti a camisa-de-forças da "boa menina", fazendo todas as coisas que eram esperadas de mim: boas notas, pós-graduação, um plano de carreira sensato e, acima de tudo, o decoro. E, no entanto, o caminho reto e limitado tinha levado a um beco sem saída: o desemprego e o endividamento. Com cada carta de rejeição que recebia durante a minha busca de trabalho académico sentia uma maré de alívio crescente. Agora eu posso fazer o que quiser, pensei. Agora eu posso mudar-me para Nova Iorque.
E, assim, dei comigo no banco de trás de um táxi com o meu pé na boca de um quase desconhecido. Eu tinha conseguido um emprego numa empresa que fazia testes a elaborar analogias, a descobrir antónimos e fins de frase para testes padronizados, com as minhas aspirações criativas gastas em jogos de palavras e exercícios de vocabulário.
Nós, os funcionários da empresa, éramos uma coleção de aspirantes a artistas em empregos diurnos. Havia o médico que desejava secretamente cantar ópera, o advogado que dedicou boa parte da sua vida ao melhor Frisbee do mundo e o engenheiro cujo interesse era o design de som.
Era um núcleo de desadaptados: escritores, atores e músicos que trabalhavam em empregos de que não gostavam para patrocinar os seus hábitos estranhos, desejos profundos e profissões improváveis. Trabalhávamos longas horas e, à saída, retirávamo-nos para bares locais para descomprimir e falar sobre as nossas segundas vidas.
Numa dessas noites concordei em partilhar um táxi para casa com um colega de trabalho bêbedo e dez anos mais novo do que eu. Um táxi era um luxo impensável para mim naquela altura. Eu ganhava 32 000 dólares por ano, vivia de cartões de crédito e dividia um apartamento com quatro colegas onde dormia num quarto, destinado a roupeiro, onde cabia apenas uma cama de pessoa só e um candeeiro.
Naquela noite, o meu colega de trabalho e eu tínhamos ficado no passeio em Hell"s Kitchen a tentar chamar um táxi. Eu não era boa a apanhar táxis, mesmo estando sóbria, mas o meu colega conseguiu, finalmente, mandar parar um. Enquanto atravessávamos as ruas da cidade fazendo conversa de circunstância, eu queixei-me dos meus pés doridos e ele e ofereceu-se para me dar uma massagem.
Eu mal conhecia aquele sujeito - ele trabalhava numa área totalmente diferente da minha - mas, sentindo-me cansada e curiosa, pensei: porque não? Descalcei as sandálias de sola de borracha e ofereci-lhe os meus pés.
Enquanto massajava como um profissional, ele declarou: "Vou-me casar dentro de poucas semanas."
Eu estava excitada com o passeio de tapete mágico no táxi que nos deixaria em casa em alguns minutos, ao contrário do metro, que parecia sempre demorar uma eternidade. Parecia-me estar numa viagem no tempo enquanto percorríamos a Avenida Franklin D. Roosevelt.
"Pois é verdade", continuou ele. "Daqui a duas semanas, eu já não sou um homem solteiro."
"Ah, parabéns", disse eu, embora naquela altura eu visse o casamento como uma forma de ser enterrado vivo.
"Há uma coisa que eu sempre quis fazer", disse ele.
"Sim?"
"A minha noiva não mo permite."
"E o que é?"
Aí, ele revelou o seu desejo mais profundo: chupar os dedos dos pés de uma mulher antes de se resignar a uma vida sem caprichos. Ele falava dos dedos dos pés em geral, com reverência e uma paixão ardente. A seguir falou sobre os meus dedos dos pés em particular: sobre os seus contornos, a sua forma e perfeição.
"Posso?", pediu, olhando para os meus pés. "Eles parecem tão doces."
Naquele momento, o tempo parou. Eu tinha-me mudado para Nova Iorque para realizar os meus sonhos mais profundos. E aqui estava este jovem, presenteando-me com o seu pequeno sonho.
Pensei em todas as vezes na minha vida em que tinha dito que não. Todos os caminhos que nunca tinha percorrido, todas as oportunidades que nunca tinha aproveitado, todos os lábios que nunca tinha beijado. E pensei: Nova Iorque não é o lugar do não. Nova Iorque é o lugar do sim!
Então disse-lhe: "Sim."
Bom, eu gostaria de poder dizer que foi a experiência mais erótica da minha vida. Ele chupou cada dedo do meu pé como se fosse a perna de um minúsculo crustáceo de que estivesse a tentar tirar a carne. Em seguida, dedicou-se ao outro pé, como se estivesse a tocar uma harmónica. Os sons de sucção despertaram a atenção do nosso motorista e eu inclinei-me para a frente através da divisória para lhe bloquear a visão.
"É isso mesmo", disse-lhe, dando-lhe indicações. "Sempre em frente até Flatbush."
Voltei a recostar-me no meu lugar e pensei sobre todos os lugares onde os meus pés tinham estado naquele dia: a subir e descer as escadas do metro, a atravessar toda a extensão de mármore da Grand Central, a percorrer os passeios de Midtown, onde restos de pastilhas elásticas os sarapintavam como manchas de um dálmata. Face a tudo isso, os meus pés pareciam incrivelmente limpos. Mesmo assim, perguntei-me se o meu companheiro poderia contrair alguma febre aftosa fatal com os seus atos impulsivos.
E, no entanto, sabia que se este viesse a ser o seu ato final, ele morreria feliz. Assim como eu morreria feliz. Assim como aqueles que vivem para ver cumpridos os seus sonhos mais profundos morrem felizes.
O táxi virou para a minha rua e o homem libertou o meu pé. "Bom", disse ele, com naturalidade: "Vemo-nos amanhã."
"Sim", respondi, compreendendo que nós nunca mais iríamos falar sobre aquilo.
E assim, no dia seguinte, fingimos que nada tinha acontecido. Passado algum tempo, eu quase duvidava de que tivesse acontecido mesmo.
Até que, um ano depois, uma amiga do trabalho veio ter comigo porque precisava de falar. Ela tinha um MBA mas nenhum interesse por negócios. Outra desadaptada a tentar descobrir o que queria ser quando crescesse.
"Tenho de falar contigo", disse ela. "Aconteceu uma coisa."
"O que foi?"
Retirámo-nos para a casa de banho das mulheres.
"Alguém no trabalho chupou os meus dedos dos pés", confessou, quase a rebentar em lágrimas.
"A sério?"
"Ele disse que se ia casar e que a noiva não lhe permitia isso."
Lembrei-me do táxi e da história do entusiasta de pés de casamento marcado, a urgência que tinha levado à minha surpreendente decisão de dizer que sim.
O que é que eu estava a sentir naquele momento? Raiva por ter sido enganada?
Não. Sentia uma pequena semente de admiração a florescer no meu coração. Ali estava um homem tão focado no seu sonho que tinha conseguido, através da simples ousadia - e um pequeno estratagema - torná-lo realidade, uma e outra vez. Eu olhei-me no espelho triplo e fiz uma anotação mental para pesquisar aulas de teatro no estúdio de Uta Hagen. Quase que me tinha esquecido da minha amiga.
"Achas que eu sou desprezível?", perguntou ela, finalmente.
"Não", respondi-lhe, tocando--lhe no ombro, enquanto contemplava um futuro mais ousado para mim. "Eu teria feito exatamente a mesma coisa no teu lugar."
Exclusivo DN/The New York Times