Partilhar é o verbo que une o actor e o professor
F oi na guerra, em Angola, que João Mota começou a deixar de escrever: "Escrevi muito na minha vida. Escrevi peças de teatro, escrevi um romance, que está lá para casa e é muito mau, escrevi poemas. Mas na guerra uma das coisas que eu tinha de fazer era os relatórios. E era terrível. E escrevia as cartas dos soldados que eram analfabetos. Fiquei farto. Foi na guerra que comecei a deixar de escrever. Às vezes mandava um aerograma à minha mãe a dizer 'estou vivo, beijinhos'."
"A minha escrita é encenar", diz, aos 63 anos, o fundador e principal rosto da Comuna - Teatro de Pesquisa. "Não me peçam relatórios, eu conto-lhes tudo", brinca. Felizmente, João tem uma memória prodigiosa. Lembra-se da viagem de comboio de Tomar para Lisboa, com a casa às costas e a mãe, a tia, a avó e a irmã. "Vivi rodeado de mulheres, mas não sou misógino", avisa. Lembra-se do som da máquina de costura onde a mãe trabalhava a noite inteira para que não faltasse comida em casa. "A minha mãe era um pouco loba, teve de lutar muito." Lembra-se assim de coisas pequenas, dos jogos de bola na rua, das chapelarias e da tabernas que havia no seu bairro.
Lembra-se, apesar de não guardar consigo qualquer fotografia ou recorte de jornal: "Não me faz falta", afirma. "Não estou preso às peças ou às personagens que fiz, nem ao que era quando era novo. Sou assim como estou. Saudades só do futuro, como dizia o Pessoa."
A memória atraiçoa-o, no entanto, quando tentamos perceber se ele é mais actor ou professor, se o teatro o levou ao ensino ou se foi esta vontade de partilhar e de aprender que o levou ao teatro. Começou a representar com oito anos, nos programas infantis da Emissora Nacional; em 1957 estreou-se no palco fazendo O Mar de Miguel Torga e, pouco depois, trabalhava com Amélia Rey-Colaço. Ao mesmo tempo, dedicava-se ao grupo de jovens da Igreja de Fátima, onde apresentava peças, ensinava os miúdos e mostrava já as suas capacidades como organizador e animador de grupos.
Na "guerra dura" onde, para além de ter começado a deixar de escrever também se afastou definitivamente da igreja católica (embora continue a acreditar em Deus), encontramo-lo a dar a aulas aos companheiros de mato - "levei 20 soldados a exame da quarta classe" - com quem formou ainda um grupo de animação, com música e poesias. "Na guerra aprendi que se morre aos 20 anos com o corpo trespassado por balas."
Mas o fascismo também o ensinou a sonhar. Era preciso, não é? O sonho de João Mota chamava-se teatro. Em 1970 era o único português no Centro Internacional de Pesquisa Teatral dirigido por Peter Brook, em Paris. Os ensinamentos que dali trouxe não cabem em tão poucas linhas. "Aprendi que sem uma grande disponibilidade e uma grande autenticidade não se pode ser actor, nem encenador, nem professor." Aprendeu a olhar para os outros e para si mesmo. Quando Peter Brook lhe perguntou se queria ficar em Paris, respondeu-lhe que não. "Há o laço afectivo e há também a consciência de uma tarefa a cumprir. Há o estímulo anti-fascista, eu tenho coisas a fazer no meu país."
Hoje, essas coisas fazem parte da história. Fundou a Comuna e foi o primeiro professor de expressão dramática na Escola de Educação pela Arte do Conservatório. Acredita profundamente que a educação deveria ser artística, sempre. "A expressão dramática é muito importante para a vida, todas as crianças e jovens deviam ter esta experiência." No teatro como nas aulas, a sua é a "escola moderna", que valoriza as experiências pessoais e a pesquisa: "Aprendo com os meus alunos mais do que ensino, é uma partilha", diz. "O espaço vazio não é só físico, é também o espaço interior. Tem que se estar disponível para criar, se não só vou imitar. Tenho que esvaziar, limpar e estar apto a fazer coisas novas, às vezes más. Porque nem tudo o que fazemos é bom. São percursos. Aprendemos fazendo. É óptimo ter dúvidas e errar."
João Mota não olha para o passado mas também não se angustia com o futuro. "O mundo está sempre em mudança, as pessoas também, sei lá eu o que vou fazer para o ano!" Aos fins-de-semana leva o cão para Tomar e procura ficar só com os seus pensamentos. Talvez ainda aproveite esses momentos para escrever um livro, revela, entre sorrisos. "Mas não será uma autobiografia."