Paranóia colectiva na alegoria política de Arthur Miller

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Embora a acção de As Bruxas de Salém (1996)esteja situada em 1692, por altura daqueles que ficaram conhecidos na história americana como os Salem trials, é evidente - e, aliás, corroborada pelo próprio autor da peça em que se baseia este filme, Arthur Miller (recentemente falecido) - a alegoria política em torno de alguns factos da memória colectiva mais recente deste país. Essa memória tem justamente a ver com a célebre "caça às bruxas" que decorreu nos Estados Unidos durante a década de 50 do século passado, e que teve como principal mentor o senador Joseph McCarthy.

O que Arthur Miller faz na sua peça de 1953, adaptada pelo próprio sob o mesmo título do texto original,The Crucible, é transpor para o contexto de uma pequena comunidade americana do século 17 uma realidade política mais recente - precisamente a da "caça às bruxas" do macarthismo -, estabelecendo o escritor norte-americano um flagrante paralelismo (essencialmente moral) entre ambos os acontecimentos e momentos históricos.

Com efeito, esse paralelo entre duas épocas que, em termos morais, se esperariam muito diferentes, acaba por evidenciar o facto (perturbante) de a mudança das mentalidades ao longo de quase três séculos ser muito mais aparente que real. No fundo, a premissa de que parte Miller para escrever The Crucible é o conceito do history repeats itself. Assim, a perseguição e a onda delatora movidas contra supostos simpatizantes da ideologia comunista na América dos anos 50 configuraria uma espécie de eterno retorno, ainda que sob novas roupagens, da igualmente eterna questão do medo do desconhecido, que, neste caso, é o medo do Outro.

A história de As Bruxas de Salém é bastante simples, e talvez seja por isso que possui não só uma ressonância universal como um forte poder alegórico. Centrada na personagem da adolescente e histérica Abigail (Winona Ryder), a acção decorre na puritana comunidade de Salem, onde um grupo de adolescentes e jovens mulheres é acusado de pactuar com o demónio em rituais de bruxaria. Após serem surpreendidas pelo clérigo local, duas delas ficam, durante alguns dias, em aparente estado de "possessão", sendo necessário chamar um pastor forasteiro especializado em exorcismos para tentar "arrancá-las" a tal estado. Mas a vinda desse pastor acaba por motivar uma autêntica febre de confissões, delações e "expiações". Nessa onda de acusações, Abigail acaba por trair e condenar o seu ex-amante, Proctor (Daniel Day-Lewis), movida pelo ciúme, a inveja, o ódio e a paranóia.

O mais interesante neste filme de Nicholas Hytner, para além da analogia e alegoria políticas, é a projecção no outro do "demónio" e do "mal" que não reconhecemos como nosso. No fundo, em todo o impulso paranóico, individual ou colectivo, aquele que se sente "perseguido" é, afinal, o "perseguidor".

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