Paraguai. A harpa de 36 cordas do fã de Carlos Paredes

Mala de viagem (138). Um retrato muito pessoal do Paraguai.
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Cheguei à capital do Paraguai, Assunção, e por todo o lado vi a bandeira nacional, por sinal diferente de todas as outras pois, para além das três faixas horizontais (vermelha, branca e azul), é a única no mundo que tem um símbolo diferente de cada lado: na frente está o brasão nacional e na parte traseira, na mesma posição, o brasão do tesouro nacional. Segui para a morada escrita por mim no próprio roteiro do país e que pertence a um dos mais importantes instrumentistas paraguaios de harpa. Fui de táxi. O motorista avisou-me daquilo que eu já sabia: "No busques el timbre cuando llegues a la puerta, en su lugar aplaude." Não procurei a campainha e bati palmas. Abriu a porta o próprio Pablo, com quem privara nas comunicações em rede para combinarmos este encontro. Ele era um entusiasta do português Carlos Paredes, já falecido nessa data, daí a minha visita, por ocasião daquela viagem. Na sala da esquerda, encontrei um mundo de instrumentos e de fotografias antigas e recentes de Pablo, e também os discos de Carlos Paredes que ele importara, desde o primeiro ("Guitarra Portuguesa", 1967) embora lhe faltasse pelo menos um que eu levei na bagagem: a antologia "A Voz da Guitarra" (2010). Sentámo-nos e, passados alguns minutos, uma jovem chegou para servir chá. Ela disse-me que é no seu país que se bebe mais chá no mundo. Como poderia eu deixar de acreditar. Afinal, também eu poderia dizer que o Paraguai tem as mulheres mais bonitas. Porém, não seria apenas uma delas que me daria essa conclusão. "Ella es mi hija" - disse Pablo, com um brilho nos olhos. Como a maioria das mulheres latinas, a que estava na minha frente tinha pele castanha clara, cabelos escuros e brilhantes e corpo de ampulheta. Quem sabe, a contar o tempo até encontrar a pessoa certa. Pablo começou a contar-me que o seu bisavô trabalhara na primeira linha ferroviária da América do Sul, a Asunción-Encarnación, construída por engenheiros britânicos no Paraguai, entre 1858 e 1861. E também referiu que o seu pai fora comunista, mas teve de fugir para a Europa, durante a ditadura de Alfredo Stroessner, entre 1954 e 1989. Herdou os discos que ele trouxe mais tarde de autores comunistas europeus, como Carlos Paredes, militante desde 1958, precisamente no ano em que o pai de Pablo participou numa frente de esquerda contra a ditadura militar, mas cuja greve foi duramente reprimida, fugindo depois. Pablo ficou sem a presença do pai e dedicou-se a aprender a tocar harpa: "El arpa llegó al Paraguay de la mano de los jesuitas y sus misiones" - disse. E, logo de seguida, iniciou os arpejos, os glissandos e os acordes de oitavas, terças e sextas. Sempre a dedilhar, Pablo contou-me que a evolução da harpa clássica não afetou a paraguaia, e um exemplo é a não adaptação dos pedais e cravelhas mecânicas, que, no caso da clássica, permite a modulação em diversas tonalidades. Apesar da sua afinação diatónica, muitos instrumentistas paraguaios aprenderam a "tocar de ouvido", de geração em geração, e utilizam as unhas em vez da ponta dos dedos como se executa na harpa clássica. Enfim, eu estava na presença de um contador de histórias, um verdadeiro património, tal como a sua tradicional harpa, que é um dos maiores símbolos da cultura nacional paraguaia. "Me gusta el arpa de 36 cuerdas, que tiene una historia." E explicou-me que a harpa paraguaia teve uma rápida evolução, desde as que foram construídas com madeiras comuns e com 28 ou 32 cordas de tripas de animais, depois substituídas pelas de "nylon". "Fue Félix Pérez Cardozo, uno de los más grandes intérpretes y compositores del arpa paraguaya, quien le agregó cuatro notas graves más al instrumento y cuatro cuerdas más, además de las 32 que tenía. Las de 36 cuerdas se hicieron famosas y eran las únicas que se utilizaban, hasta que el arpista Papi Galán introdujo siete notas altas más, creando la de 43 cuerdas" - disse, passando-me um folheto com dados sobre Pérez Cardozo. Este fez parte de um trio muito conhecido, cujos instrumentos eram uma harpa e duas guitarras, e que fez carreira em Assunção e depois em Buenos Aires. O músico ficou na história da harpa paraguaia pelas mudanças que introduziu na construção do instrumento e por ter composto temas que fazem parte do repertório popular. Não é por acaso que no dia 9 de junho se celebra o Dia da Harpa Paraguaia, porque era o dia de aniversário de Pérez Cardozo. "Ese día también es el cumpleaños de María de la Asunción" - adiantou, talvez já percebendo que a minha atenção não estava apenas nas harpas. E, de repente, antes de nos despedirmos, Pablo tocou "Llegada", um dos temas mais conhecidos de Pérez Cardozo, para brindar a minha chegada ao Paraguai, parecendo dizer: "¡Debes quedarte!" A autenticidade daquele encontro não estava na saída nem na chegada, mas no meio da travessia, pensei eu. Todos os restantes dias foram com María de la Asunción, cicerone, ou não fora a harpa o elo simbólico de ligação entre o céu e a terra, e as suas cordas os degraus simbólicos da vida eterna.

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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