Para um cartaz de Trump Shepard Fairey escolhia a palavra Narcisismo

O artista norte-americano Shepard Fairey, criador do cartaz "Obama Hope", usaria a palavra "Narcisismo" para acompanhar um retrato de Donald Trump, presidente de um país para o qual considera ainda haver esperança, apesar de estar num momento "sombrio".
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Seis meses depois de Donald Trump ter sido eleito presidente dos Estados Unidos, sucedendo a Barack Obama, o artista Shepard Fairey contou, em entrevista à agência Lusa, que ainda sente "muita vergonha" de que o país tenha escolhido o empresário milionário como chefe de Estado.

"As coisas estão muito sombrias nos Estados Unidos, neste momento, e eu sinto muita vergonha que, como uma nação, tenhamos elegido Trump. Ele não ganhou o voto popular, mas, baseado na maneira como os distritos funcionam, que é parcialmente a manipulação do sistema, ele foi eleito", afirmou à Lusa, em Lisboa, onde está a propósito da sua primeira exposição em Portugal.

Uma das obras mais famosas de Shepard Fairey, cujo trabalho tem um cunho ativista, é um retrato de Barack Obama ("Obama Hope"), a vermelho, branco e azul, espalhado pelos Estados Unidos em formato de cartaz, durante a campanha das eleições presidenciais de 2008.

Nove anos depois, e apesar do momento "sombrio" que o país atravessa, o artista mantém "esperança [hope]" no país, porque acredita que "as pessoas querem coisas que são diferentes do que o Trump defende".

Para Shepard Fairey, "a única forma de Trump ter sido eleito, é porque o sistema não está a funcionar para muita gente". "As pessoas estão desesperadas para tentarem qualquer coisa, mas acho que irão aprender a lição", disse.

Além disso, "há muita apatia e ignorância nos Estados Unidos, muitas pessoas não votam e também não pesquisam [acerca de] as verdadeiras dinâmicas dos assuntos que têm impacto nas suas vidas".

Com a arte que cria, Shepard Fairey tenta "constantemente dar um empurrão" ao que considera serem "ideias progressistas" e também de como "é importante olhar para as questões e aprender sobre elas".

"Se sentisse que não havia esperança, não me preocupava, por isso obviamente acho que há esperança [para os Estados Unidos]".

Num cartaz com o rosto de Donald Trump escreveria a palavra 'Narcisismo', disse à Lusa.

Numa entrevista recente ao jornal The Art Newspaper, o artista revelou que, para um cartaz com o rosto da adversária de Donald Trump, Hillary Clinton, escolheria "meh", interjeição usada para expressar indiferença ou aborrecimento.

Questionado pela Lusa sobre qual seria a palavra para um poster de Bernie Sanders, senador que concorreu com Hillary ao lugar de candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, Shepard Fairey respondeu "Convicção".

"Apoiei Bernie Sanders porque ele tem sido consistente ao longo de 35/40 anos, e é um dos políticos mais pobres dos Estados Unidos, demonstrando que não está [na Política] em proveito próprio, está para servir a população. Acredito que tem convicção", explicou.

Exposição na Underdogs

Shepard Fairey inaugura hoje, na galeria Underdogs, Printed Matters - Lisbon, parte de uma série contínua de exposições que é também o nome do projeto que iniciou em 2010, e foi apresentado pela primeira vez em Los Angeles.

O reconhecido artista urbano e 'designer' gráfico, de 47 anos, que vive e trabalha em Los Angeles, combina no seu trabalho elementos do 'graffiti' e da 'pop art', e tornou-se conhecido com o projeto "Obey", que iniciou em 1989 com um 'sticker' (autocolante) criado pelo artista, quando estudava na Rhode Island School of Design, e acabou por se tornar uma campanha de arte de guerrilha, a nível mundial.

Os trabalhos expostos são sobretudo impressões em madeira, papel e metal, mas há também 'stencils', que Shepard Fairey usou para pintar nas ruas e que, quando começam "a ficar frágeis", são reformados "como objetos de arte em molduras". Em comum têm as cores utilizadas - vermelho, preto, dourado e creme, que o norte-americano começou a usar "por uma questão prática", embora haja uma série de trabalhos em azul, criados para a exposição "Earth Crisis" ("Crise da Terra") -- e o teor ativista.

"Estou constantemente a tratar os temas do poder abusivo, da necessidade de questionar a autoridade, do poder abusivo do mercado empresarial, da maneira como as empresas, especialmente nos Estados Unidos, influenciam o governo, da destruição ambiental e das alterações climáticas, da vigilância e da desintegração da comunicação social. Há peças sobre esses temas, não só nesta exposição, mas em todas as que faço e estou sempre a encontrar maneiras novas de os abordar", contou, em entrevista à agência Lusa, em Lisboa.

Shepard Fairey vê na arte "uma ótima maneira de comunicar". "Conseguir fazer uma imagem de que estou orgulho e me dá gozo fazer, mas que também diga alguma coisa é importante para mim, porque me permite ter os dois lados da minha personalidade", referiu.

É fã de bandas e artistas como Rage Against the Machine, The Clash, Public Enemy, Bob Marley, Neil Young, Bob Dylan, "que intervêm [politicamente] através do que fazem". Considerando que "os músicos o têm feito mais frequentemente do que os artistas visuais", Shepard Farey gostava de "o ver feito mais vezes nas Artes Visuais".

Como exemplos de quem já o faz, falou do britânico Banksy, do português Vhils e do francês JR, recordando ainda o trabalho dos veteranos norte-americanos Barbara Kruger e Robbie Conal, "politicamente opinativos".

"Gostava de ver mais disso, especialmente nos Estados Unidos, onde é importante neste momento. Mas não vou dizer aos outros artistas como devem fazer o seu trabalho", afirmou.

Com uma exposição composta sobretudo por obras impressas, não crê "que a impressão tenha os dias contados, apesar de também usar plataformas 'online' e técnicas digitais".

"Sentares-te à frente de um computador e receberes informação ou olhares para ela no teu telefone é muito impessoal, muito seguro e muito desprendido. A impressão, seja algo que podes ver aqui a três dimensões ou nas ruas, como um 'poster' ou um mural, uma intervenção artística na paisagem, liga-se ao que é visceral e vital em estar-se vivo, que é viver a vida e ser-se capaz de sentir coisas, e isso nunca vai desaparecer, vai ser sempre importante para as pessoas", defendeu.

Três murais em Lisboa

No âmbito da exposição, Shepard Fairey criou três murais em Lisboa. Um deles, na rua Senhora da Glória, é uma colaboração com Vhils.

"A minha parte do mural, metade do rosto de uma mulher muçulmana, é baseada numa série que fiz chamada 'Universal Personhood'. Em vários países muçulmanos a mulher não era considerada uma pessoa completa até há pouco tempo, era três quintos de pessoa. A isso juntas que, no mundo ocidental, se acha que se deve ter receio dos árabes e que estes contam como menos. Quero ver 'Universal Personhood' [personalidade universal] para todas as mulheres no mundo, independentemente de que zona são, de que religião", explicou.

A mulher muçulmana de Shepard Fairey e o retrato de uma outra de Vhils "convergem". "A ideia é de que todos podemos juntar-nos. Podemos ser todos de perspetivas diferentes, mas temos todos algo em comum", salientou.

Nos outros dois murais surgem figuras fardadas, com armas na mão de onde saem flores - no da rua Natália Correia, na Graça, uma mulher, e na rua José Gomes Ferreira, às Amoreiras, um homem.

Nestes dois murais há "uma boa sobreposição entre os Estados Unidos e Portugal".

"O Vhils explicou-me o simbolismo da flor na arma da revolução de 1974, e é um símbolo que tenho usado no meu trabalho como símbolo pró-Paz, inspirado pelos protestos contra a Guerra do Vietname nos Estados Unidos, em que os estudantes universitários colocavam flores nos canos das armas dos militares da Guarda Nacional. A flor e a arma [foram pintados] como símbolo pró-Paz e reconhecimento da História de Portugal", contou.

O desenho do mural da rua Natália Correia, da "guarda da Paz", será impresso numa edição limitada a 450 exemplares, dos quais metade serão vendidos pela Underdogs e a outra metade estará disponível através do 'site' do artista, depois da exposição de Lisboa.

Para Shepard Fairey, que considera "muito importante" pintar na rua, o lado bom da impressão é poder mostrar trabalhos de que se orgulha em locais diferentes. "Em vez de apenas uma grande exposição num ano, posso fazer várias e os trabalhos têm um preço mais acessível, mas mesmo assim acho que são boas peças de arte", disse.

Em Lisboa, será possível ver ao vivo, e de forma gratuita, esses trabalhos, entre hoje e 31 de julho e de 01 a 23 de setembro. Já os murais pertencem agora à cidade e não têm data prevista para desaparecer.

Shepard Fairey está em Portugal a convite da plataforma Underdogs, que tem como responsáveis a francesa Pauline Foessel e Vhils.

A Underdogs é um projeto cultural que se divide entre arte pública, com pinturas nas paredes da cidade, exposições dentro de portas, no n.º 56 da rua Fernando Palha, um antigo armazém recuperado e transformado em galeria, e a produção de edições artísticas originais.

A plataforma tem também uma loja, na rua da Cintura do Porto de Lisboa, e começou em 2015 a organizar visitas guiadas de Arte Urbana em Lisboa.

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