Para redescobrir a grandeza de E Tudo o Vento Levou

O clássico de 1939 ilustra como poucos a idade de ouro de Hollywood. Hoje o CCB passa o filme em cópia restaurada
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Clark Gable e Vivien Leigh estão de volta! Que é como quem diz: nem tudo está perdido no mundo da cinefilia. Neste tempo em que é possível ver um qualquer filme no retangulozinho do nosso telemóvel, o CCB volta a celebrar a grandiosidade física e a vocação espetacular que o cinema pode envolver, apresentando E Tudo o Vento Levou (hoje, 16.00), a clássica produção de David O. Selznick com realização de Victor Fleming. Trata-se, aliás, do primeiro de um conjunto de cinco títulos que, ao longo dos próximos meses, serão projetados no mesmo local, ilustrando um sugestivo lema: "Grande Auditório, Grande Ecrã, Grandes Clássicos".

E Tudo o Vento Levou está para o cinema como a marca Kodak está para a história da fotografia. Assim como os nossos avós diziam que uma máquina fotográfica era uma "kodak", assim também dizer E Tudo o Vento Levou implica, de imediato, o reconhecimento de qualquer coisa que transcende a escala normal da experiência humana - o cinema como fenómeno "maior que a vida".

Em 1939, quando surgiu E Tudo o Vento Levou, o cinema estava a consolidar a sua dimensão de espetáculo de massas, já muito para além do fenómeno de feira que tinha sido o cinematógrafo. Os respetivos números de bilheteira continuam a ser dos maiores de todos os tempos. Atualizando esses números para uma tabela elaborada em função da inflação, compare-se, por exemplo, os seus 1800 milhões de dólares de receitas no mercado dos EUA (valor que continua a ser recorde) com a performance do filme mais rentável de 2017: até agora, Star Wars: O Último Jedi rendeu "apenas" 555 milhões, valor que o coloca bem distante de E Tudo o Vento Levou, em 54º lugar daquela tabela.

Para além das estatísticas de tesouraria, os números sublinham uma importante evidência sociológica: com a proliferação de formas de consumo alternativas, do DVD às plataformas da Internet, o cinema deixou de ser o acontecimento de massas que foi nas décadas de 30/40 do século passado.

Nada disso exclui o reconhecimento de que as atuais formas de existência (e, num certo sentido, de sobrevivência) do cinema prolongam, de modo mais ou menos paradoxal, as glórias do passado. Em particular no domínio da preservação dos filmes. Assim, refletindo o aperfeiçoamento da passagem da película clássica para os suportes digitais, E Tudo o Vento Levou será projetado no CCB numa cópia digital restaurada, de primorosa definição 4K, lançada pela Warner Bros. em 2014 para assinalar o 75º aniversário do filme.

A persistência de E Tudo o Vento Levou no imaginário cinéfilo ilustra a admirável síntese de temas históricos e valores cinematográficos que nele encontramos. Na sua origem está o romance de Margaret Mitchell, editado em 1936, um fresco da Guerra Civil americana e do período de reconstrução que foi, de facto, um fenómeno de genuína popularidade - segundo valores coligidos em 2014, já foram impressos, em todo o mundo, mais de 30 milhões de exemplares do livro.

A odisseia histórica apoia-se num aparato de encenação verdadeiramente impressionante, mesmo se não o podemos desligar de outras produções que, ao longo da década de 30, tinham consolidado a dimensão mais espetacular do cinema - lembremos os casos célebres de Revolta na Bounty (1935), de Frank Lloyd, A Carga da Brigada Ligeira (1936), de Michael Curtiz, ou O Corsário Lafitte (1938), de Cecil B. DeMille. Acima de tudo, tal aparato não é tratado como um elemento meramente decorativo, antes se apoia numa elaborada teia narrativa que faz coexistir o género histórico com as emoções do melodrama. Manda a tradição que se diga que o triângulo amoroso é a matriz essencial da escrita melodramática. Neste caso, porém, é de um quarteto que se trata, tendo a mítica personagem de Scarlett O"Hara como pólo principal. Interpretada por Vivien Leigh, Scarlett, filha do proprietário de uma plantação de algodão da Georgia, é a encarnação perfeita da heroína jovial, depois atingida pela tragédia; atraída por Ashley Wilkes (Leslie Howard), que acaba por casar com a sua prima Melanie (Olivia de Havilland), Scarlett vive uma longa e atribulada relação com Rhett Butler, personagem que conferiu também dimensão mítica ao seu intérprete, Clark Gable.

Ironicamente, nos Óscares, Gable foi um dos vencidos, não ganhando na categoria de melhor ator. De qualquer modo, E Tudo o Vento Levou arrebatou oito estatuetas douradas, incluindo uma para Vivien Leigh, outra para Victor Fleming e ainda a de melhor filme de 1939. Quem também ganhou, como atriz secundária, foi Hattie McDaniel (intérprete de uma das aias de Scarlett), transformando-se na primeira pessoa afro-americana a receber uma distinção da Academia de Hollywood.

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