Para não dizer que não falei das flores

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Tive a enorme sorte de crescer num bairro acabado de construir onde os prédios conviviam com os jardins. Em Lisboa, nos Olivais Norte, entre edifícios desenhados por Nuno Teotónio Pereira, Nuno Portas, Braula Reis, Bartolomeu Costa Cabral, Pedro Cid, Victor Palla e outros como eles. Não sabíamos estes nomes mas acho que posso dizer que aproveitámos intensamente - os meus amigos de diferentes gerações e eu no meio - os espaços de relva e os campos de jogos que ligam os prédios, nós todos uns bandos de miúdos meio vadios em corridas, bicicletas, patins, jogos do mata e do trapo queimado. O futebol era proibido na relva, por vezes aparecia um polícia que confiscava a bola sem misericórdia, mas conseguíamos até fazer campeonatos. Havia largueza que sobrava para namorar nos recantos, jogar à macaca entre estacionamentos, fazer ralis de caricas nos muros. Junho era um mês excitante por causa das grandes fogueiras que saltávamos de mãos dadas.

Não há comparação possível entre estes espaços modernistas pensados para as pessoas e o jardim da Praça da Império, feito em 1940 para as comemorações dos Centenários. E com esta frase faço descaradamente a deriva para o tema a que venho. Sei bem que há toda uma história dos jardins, que naturalmente não domino. Não escrevo, portanto, a fingir-me especialista em jardins históricos ou paisagismo, que não sou. Como todas as pessoas, eu gosto de jardins, e dos de Lisboa em geral, e de alguns em particular.

A Praça do Império já foi um dos lugares para passear à noite, antes de a noite ser perigosa para excursões familiares. Ia-se lá ver as espetaculares águas coloridas da fonte luminosa. Aquilo era um acontecimento. Sei que havia - e lá se mantêm - sebes a limitar os relvados, uma coisa como a polícia nos Olivais, com a vantagem de que os buxos não nos roubavam bolas, só nos impediam de correr por ali. Olho para os desenhos originais de Cottinelli Telmo e não estão lá sebes nenhumas. Também não havia barreiras quando, 20 anos depois, foram plantados, numa filigrana de flores, os brasões das cidades e das colónias, numa exposição de floricultura.

Com todo o respeito pelos jardins históricos, não sonho com a reposição dos brasões esfrangalhados. No projeto que venceu o concurso de ideias - feito por uma paisagista com enorme experiência de reabilitação de jardins históricos - senti falta de árvores que nos chamem para a frescura das sombras. E gosto da ideia de tornar apetecível a passagem por baixo da Marginal e da linha do comboio. O que me parece inútil é resumir o debate a gritos à volta de enfeites que já perderam a graça e o sentido.

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