Para estes estudantes sírios, o futuro começou em Portugal
Mohammed, licenciado em Medicina, está a fazer o mestrado em Saúde Pública na Universidade Nova de Lisboa. Amer prepara o doutoramento em Arquitetura porque quer trabalhar o sentido de casa para os que tudo perderam. Genwar, está a estudar Ciência Política e Relações Internacionais mas confessa o sonho de ser escritora. Une-os a circunstância de terem vindo da Síria, a fugir à guerra, e terem encontrado em Portugal não apenas a paz, mas a oportunidade de prosseguir estudos superiores. Como eles, 300 jovens, dos quais só um terá voltado à terra natal, mas no âmbito do trabalho numa organização internacional. As suas histórias, ignoradas pela maior parte dos portugueses, foram agora reunidas no livro A Minha Terra é Linda - Histórias dos Estudantes sírios em Portugal, editado pela Âncora Editora e apresentado ontem, em Lisboa.
A importância destes testemunhos na primeira pessoa foi sublinhada, na sessão de lançamento, pelo antigo Presidente da República Jorge Sampaio, fundador da Plataforma Global para Estudantes Sírios (criada em 2013): "Esta iniciativa de acolhimento tem sido benéfica para todos: para os estudantes que assim puderam prosseguir a sua formação académica e resgatar as suas vidas, trilhando um futuro de esperança; para as instituições de ensino superior, universidades e politécnicos, bem como para a comunidade académica." Os resultados falam por si: desde 2014, foram concedidas mais de 650 bolsas de estudo anuais e já cerca de 135 bolseiros sírios concluíram licenciaturas, mestrados ou doutoramentos, a grande maioria entre nós, mas alguns também no Líbano, Jordânia, Egipto, França, Alemanha, Canadá e Estados Unidos. Entre os diplomados, quase todos ingressaram já no mercado de trabalho ou prosseguiram para níveis de estudo mais avançados. Embora estes números estejam sempre a mudar, Helena Barroco, secretária geral da Plataforma, afirma que, neste momento, dos 135 sírios já formados nas nossas universidades, apenas cinco estão à procura de emprego. Todos os outros já foram colocados, quer em Portugal, quer noutros países.
Histórias com finais felizes? Sem dúvida, mas com momentos de muita angústia e tensão, como narra a própria Helena Barroco neste livro em que une a sua voz à dos estudantes: "O embarque do grupo de estudantes de março de 2014, o primeiro, ficou bem gravado na minha memória. Recordarei sempre um momento quando, chegada a hora das despedidas, a mãe do Emad, um dos rapazes mais novos, que tinha um ar de menino bem comportado, se agarrou a mim, implorando: "por favor tome conta do meu filho, é o único, não tenho outro". Lembro-me que depois de Emad ter chegado a Bragança, onde ia estudar, telefonei à senhora para lhe dizer que estava tudo bem com o rapaz." Sabemos hoje que este menino de sua mãe está a concluir o mestrado em Engenharia Mecânica, os pais conseguiram fugir para a Suécia e visitam-se mutuamente nas férias. Genwa, a mais jovem do grupo, a que sonha ser escritora, conta como partir para Portugal aos 16 anos significou deixar para trás a mãe em lágrimas, mas também um país em que se receava "não voltar a casa sempre que se sai. E, às vezes, ter medo dentro da própria casa."
À chegada a Portugal, estes jovens, e depois todos os outros que os seguiram (o último grande grupo, de 53 pessoas, veio em 2018) encontraram o apoio desta Plataforma mas também um conjunto de cidadãos empenhados. É o caso da jornalista Francisca Gorjão Henriques, que, nesta sessão de lançamento, contou a sua história com Alaa, uma refugiada síria acolhida pela sua família: "Uma vez perguntei-lhe do que sentia mais falta e ela respondeu-me: "Do pão sírio, que não consigo encontrar em Lisboa". Nós portugueses sabemos dar o valor a este tipo de saudades porque achamos sempre que o nosso pão é o melhor do mundo e que não o conseguimos encontrar em qualquer outro lugar." Desta constatação nasceu a Associação Pão a Pão, de que Francisca é presidente executiva. O objetivo é promover a inclusão à mesa, através da partilha de sabores e modos de confecionar a comida, como demonstra, no mercado de Arroios, em Lisboa, o restaurante Mezze, especializado em gastronomia do Médio Oriente. "O que acontecia - explicou Francisca - é que muitas das mulheres refugiadas, a maior parte sem formação académica e sem falar ou compreender Português, tinha a maior dificuldade em arranjar emprego. O Mezze foi criado para dar emprego a algumas dessas pessoas."
A pandemia, como também é dito neste livro, pode ter baralhado as voltas a tantos projetos (incluindo o de acolher mais estudantes, o que se tornou impossível desde o ano passado) mas o investimento na formação e qualificação não foi interrompido. Como frisou Jorge Sampaio, "os jovens são dos grupos mais afetados pelas situações de emergência humanitária, tanto mais que o acesso à educação - sobretudo à educação terciária - ainda é visto nestes contextos de crise como um luxo dispensável."
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