Para além do centro e da esquerda
1 Ao longo da sua história, a social-democracia conheceu inúmeras variantes, com múltiplas designações: social-democracia, trabalhismo, terceira via, socialismo ou, entre nós, socialismo democrático. Hoje, em mais um momento de crise nessa história, multiplicam-se as reflexões sobre o seu futuro, as quais serão mais bem-sucedidas se conseguirem incorporar criticamente contributos de todas aquelas variantes. Por exemplo, da terceira via será útil recusar a ideia de que a promoção da igualdade de oportunidades seja feita em detrimento da redistribuição, mas reter a orientação liberal de limitação dos poderes estatais e de promoção de políticas da vida. É este o caminho que procuro seguir no presente artigo.
2 A social-democracia só merece esta designação se for igualitarista. Porém, é possível ser-se radicalmente igualitarista sem se ser anticapitalista. Para isso é preciso, em primeiro lugar, mudar as regras que constituem os mercados. Não de regular mais ou menos os mercados, porque todos os mercados são regulados, mas de mudar as regras de funcionamento dos mercados, democratizando-os e colocando-os ao serviço da maioria e não de uns poucos, para usar os lemas de Douglas Massey e Robert Reich. É preciso, em segundo lugar, definir os limites do mercado. Uma economia de mercado não tem de ser uma sociedade de mercado. Para além das funções de soberania, como a justiça ou a segurança, há bens públicos, como a educação ou a saúde, ou infraestruturas físicas básicas, como as redes de transportes ou de energia, que devem ser estatais. Finalmente, o igualitarismo requer redistribuição para além da promoção da igualdade de oportunidades. Este não é um traço menor ou defensivo das políticas social--democratas, mas um mecanismo fundamental de correção dos efeitos desiguais das heranças sociais que, nos dias de hoje, deve ser oposto, como alternativa de esquerda, à ideologia meritocrática do empreendedorismo. Numa sociedade tão elitista e desigual como a portuguesa, as políticas de redistribuição devem mesmo ser reforçadas, tendo como pilares a progressividade fiscal e o fornecimento de bens e serviços públicos gratuitos e universais. Em resumo, a social-democracia deve refazer os mercados, sustentar um setor público não mercantil e redistribuir mais.
3 A social-democracia deve ser radicalmente liberal, em termos políticos. Em primeiro lugar, porque a concretização do projeto igualitarista da social-democracia requer o alargamento e reforço do papel do Estado, não um Estado mínimo. Mas porque um Estado forte é sempre um Estado perigoso para as liberdades, a social-democracia deve promover o controlo, divisão, descentralização e delegação dos poderes estatais centrais. Em segundo lugar, e porque uma das mais fundamentais divisões de poder é a que separa o poder económico do poder político, a social--democracia deve ser radicalmente antimonopolista e contrariar o surgimento de mega-atores empresariais com capacidade para pôr em causa a autonomia da política. Finalmente, a social-democracia deve promover políticas da vida que contrariem as discriminações e criem espaços de reconhecimento sociocultural, não se envolvendo, no entanto, em políticas identitárias promotoras de qualquer tipo de "tribalismo". Em resumo, a social-democracia deve conter e descentralizar os poderes estatais, limitar a acumulação de poder económico e eliminar o sofrimento inútil com origem no preconceito instituído na tradição.
4 Na Europa, a social-democracia deve ser europeísta. Num mundo globalizado, fazer com sucesso a reforma social-democrata do capitalismo requer escala, isto é, um espaço socioeconómico de concretização com dimensão concorrencial global. No nosso contexto regional, a social-democracia deve pois colocar a participação na União Europeia e a reforma desta entre os seus objetivos estratégicos centrais. Como refere Nicos Mouzelis, a social-democracia num só país é cada vez menos viável. Por isso, a necessidade de participar ativamente no quadro da União Europeia, que é, desde sempre, um projeto progressista, de superação dos fechamentos nacionais e dos riscos de guerra que lhe estão endemicamente associados. Essa marca progressista pode e deve ser alargada, retomando uma ideia de desenvolvimento mais convergente e social, mais colaborativo e cosmopolita, e reforçando a democratização das instituições europeias. Na comparação com outros grandes espaços políticos do mundo global de hoje, dos EUA à China, apenas na União Europeia parece ser viável o sucesso, ainda que incompleto, de reformas social-democratas do capitalismo. Em resumo, a social-democracia precisa da escala que só a Europa lhe pode dar.
5 Em conclusão, o Partido Socialista estará em melhores condições de afirmar o seu projeto na sociedade portuguesa se combinar sempre, na sua ação, estas três orientações fundamentais: igualitarismo, liberalismo e europeísmo. Elas estão, aliás, completamente imbricadas na história do partido, como é evidenciado quer pela identidade que sempre reclamou, a do socialismo democrático, quer pelo papel de liderança que teve na adesão à Europa. Na definição das políticas que as concretizam deverá ter em conta a recomposição social da população e os novos problemas locais e globais. Mas o que é novo pode ser enfrentado a partir das orientações gerais de sempre, sem necessidade de inflexões doutrinárias mais ao centro ou mais à esquerda.
Sociólogo; secretário Nacional do PS