Papa Francisco no Canadá para uma "peregrinação de penitência"
Durante mais de um século, 150 mil crianças das diferentes comunidades indígenas do Canadá (Primeiras Nações, Inuit e Métis) foram forçadas a frequentar colégios internos estatais, muitos deles geridos pela Igreja Católica. Obrigadas a deixar as famílias, a sua linguagem e cultura numa tentativa de assimilação, no que uma comissão de verdade apelidou em 2015 de "genocídio cultural", muitas foram alvo de abusos físicos e sexuais e morreram de doença, malnutrição ou negligência. Em abril, o Papa Francisco recebeu uma delegação destas comunidades no Vaticano, pedindo desculpa pelo papel da Igreja nestes eventos. Agora parte numa "peregrinação de penitência" ao Canadá, que espera possa contribuir para "o caminho de cura e reconciliação já iniciado".
Francisco, de 85 anos, cancelou uma viagem à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul no início deste mês por causa de problemas de saúde que dificultavam a sua mobilidade (chegou a aparecer em cadeira de rodas). Mas já está recuperado para uma visita de seis dias e 20 mil quilómetros ao Canadá, sob o mote "Caminhar Juntos", que o levará a Edmonton, Maskwacis, Lac Ste. Anne (as três na região de Alberta), ao Quebeque e finalmente a Iqualuit (nos territórios do Ártico). Além de pelo menos cinco encontros com as diferentes comunidades indígenas e sobreviventes, a viagem inclui duas missas (na terça e na quinta-feira).
Na quarta-feira, o Papa estará com o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, que no ano passado voltou a pedir desculpas às comunidades indígenas em nome do governo - em 2008, o seu antecessor Stephen Harper tinha sido o primeiro a fazê-lo, indicando que este tinha sido "um capítulo triste" na história do país. O pedido de desculpas de Trudeau surgiu já depois de terem sido descobertas, em maio de 2021, com recurso a radares de penetração no solo, os túmulos de 215 crianças numa dessas 139 escolas - que operaram entre 1831 e 1996. Desde então já foram encontrados 1300 corpos.
Francisco é o segundo papa a visitar o Canadá, tendo João Paulo II estado no país em três ocasiões - 1984, 1987 e 2002. Esta viagem servirá para reiterar o pedido de desculpas que fez em abril. "Infelizmente, no Canadá, muitos cristãos, incluindo alguns membros de ordens religiosas, contribuíram para as políticas de assimilação cultural que, no passado, prejudicaram gravemente as populações nativas", disse o Papa no domingo passado, na sua intervenção semanal na Praça de São Pedro, lembrando que já teve oportunidade de "expressar a minha dor e solidariedade face ao mal que sofreram".
Para a diretora dos Estudos Indígenas na Universidade de Montreal, Marie-Pierre Bousquet, as desculpas "terão um maior impacto" proferidas em solo canadiano, "nomeadamente porque para as culturas indígenas, a terra dos antepassados é de particular importância". Numa entrevista à AFP, disse que para muitos sobreviventes as expectativas são altas, porque esperam há anos por uma oportunidade "de falar e ser ouvidos".
Mas também é importante para os outros canadianos, que nos últimos anos têm procurado enfrentar a sua história e as consequências do sistema de assimilação que durou mais de cem anos. A 30 de setembro do ano passado, foi assinalado o primeiro Dia Nacional para a Verdade e a Reconciliação. Já em maio deste ano, durante uma visita ao Canadá, o príncipe Carlos, em nome da rainha Isabel II, também reconheceu o sofrimento das comunidades indígenas. "Temos que encontrar novas formas de lidar com os aspetos mais negros e mais difíceis do passado. Reconhecer, conciliar e lutar para fazer melhor, é um processo que começa com ouvir", afirmou.
Quando as delegações viajaram em abril até ao Vaticano, descobriram no museu etnológico dezenas de milhares de artefactos e obras de arte feitas por comunidades indígenas de todo o mundo, muitas delas enviadas para Roma pelos missionários católicos para uma exposição em 1925. Para o Vaticano, as peças foram presentes ao papa Pio XI, que queria celebrar o alcance global da Igreja Católica e a evangelização. Mas os grupos indígenas do Canadá querem que os objetos, que consideram culturalmente valiosos, sejam devolvidos às suas comunidades.
O porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, não pôs de lado a possibilidade de o Papa poder devolver alguns dos objetos durante a viagem: "Vamos ver o que acontece nos próximos dias", afirmou aos jornalistas, citado pela AFP. Não seria a primeira vez que o Vaticano devolvia algum destes artefactos - ainda no ano passado, foi devolvida ao Equador uma "tsantsa", uma cabeça encolhida usada em rituais pelos jivaros da Amazónia.
susana.f.salvador@dn.pt