Palavras de salvação
Provavelmente poucas pessoas o saberão, mas o actual ministro da Cultura conheceu a sua namorada, Anabela Mota também ela Ribeiro, graças a este jornal e mais especificamente ao DNa, caderno onde a jornalista assinava então as suas entrevistas. Mais do que de uma coincidência podemos falar de serendipidade, palavra estranha que alguém definiu como "o que acontece quando vamos ao palheiro em busca de uma agulha e encontramos a filha do agricultor". Ou o próprio agricultor, acrescentaria eu. É conforme o necessário a cada qual para ser feliz.
Já coincidência, aquela palavra que utilizamos quando não vemos as roldanas do destino, kismet, fado ou lá como queiram chamar-lhe, foi a circunstância de José António Pinto Ribeiro (o ministro) ter conhecido pessoalmente Adriana Calcanhotto num jantar em casa de António também ele Pinto Ribeiro (o professor universitário que, na altura de divulgação da nomeação, muitos pensaram ter sido o escolhido para ministro).
Foi assim que Adriana Calcanhotto, conhecendo ambos os Pinto Ribeiro, optou por um deles para a apresentação deste seu livro sobre a atribulada passagem por Lisboa, a qual incluiria dias encerrada consigo mesma num quarto de hotel padecendo de um "surto psicótico induzido por medicamentos".
A coisa foi de tal ordem que Adriana ouvia um colectivo de vozes, "em português de Portugal", gritando "coisas rudes e ordinárias". Ocorreu-me, de início, que se tratasse apenas de um grupo de estivadores do porto de Lisboa a ensaiar ataques a Miguel Sousa Tavares no quarto vizinho. Mas não. Parece que as vozes estavam mesmo dentro da cabeça da cantora, algo que não se deseja a ninguém.
Encerrada no quarto, com "o violão" encostado à parede, mas incapaz de o tocar, encharcada num cocktail de comprimidos que alguém (provavelmente um veterinário, a avaliar pela dose para cavalo) lhe receitara, Adriana escreveu este Saga descrevendo a cena "puxada à beça". Nota aos que não vêem telenovelas da Globo: se não souberem o que significa "puxada à beça" ou, já agora, "pegando no tranco", não se preocupem; Pinto Ribeiro é um senhor que fala cinco línguas para além do português e também não o sabia.
Aqui chegado é importante esclarecer que, como avisou desde logo Inês Pedrosa, Pinto Ribeiro não estava ali na qualidade de ministro, mas sim como "apresentador". "Insisto em fazer coisas que fazia antes, coisas normais", explicaria em seguida. Avaliando a sua prestação no resto da sessão, podia ter uma carreira imparável como apresentador se quisesse; depois de um discurso sobre o livro como "salvação pela palavra" e "reconstrução da identidade pela escrita" interromperia diversas vezes para aligeirar o ambiente, ler passagens da obra ou fazer perguntas à autora.
Com voz hesitante e tímida, vestida de preto com algo peludo no ombro direito parecido com um gato morto, Adriana ia reconhecendo a adequação das palavras do apresentador-não-ministro àquilo que se passara consigo e, amorosamente, evitava culpar quem quer que fosse. Remoques só os houve para "alguns jornalistas portugueses que não acreditaram que eu estava doente ou pensaram que estava numa banheira de espuma".
"Quando eu fui ferido vi tudo mudar/ Das verdades que eu sabia." Começa assim a canção de Guilherme Arantes, O Meu Mundo e nada mais. Após a cantarolar, Adriana confessou: "Cada vez que canto essa música me lembro de tudo." Depois, após perguntas da assistência que a tratava por tu com aparente grande intimidade, seguiu-se o momento de assinatura dos autógrafos. Em São Paulo durara quatro horas. Aqui foi bastante mais curto. Mesmo assim, um discreto Camané ainda aguardou o seu tempo na fila com toda a paciência.