PAJE. A porta que não se fecha aos jovens que deixam as casas de acolhimento
"Nas tribos da Amazónia, Pajé é aquele que indica caminhos e orienta. No fundo é isso que nós somos". João Pedro Gaspar acentua a última sílaba propositadamente para soletrar o nome da associação que criou em 2016, muitos anos depois de ter tomado contacto pela primeira vez com o universo dos Centros de Acolhimento e das crianças e jovens à deriva.
A história de João Pedro começou há 23 anos, quando foi convidado para ir trabalhar para uma dessas casas, em Coimbra, onde agora fala ao DN, e onde está sediada a PAJE - Plataforma de Apoio a Jovens Ex-Acolhidos, única associação do género em Portugal, com âmbito nacional . "No primeiro dia achava que era o último, porque eu não conseguia dar resposta a tantas solicitações, Eram muitas dezenas de meninos e meninas, longe do modelo que hoje temos de acolhimento". Foi enquanto professor e tutor, ele que tinha por formação de base as geociências. Mais tarde fez doutoramento em psicologia da educação e pós doutoramento em educação social, fruto desse tal dia "que acabou por ser a minha epifania", conta, enquanto prepara o "Dia do Acolhimento", uma mesa redonda que acontece esta manhã na PAJE, com a presença de vários especialistas, testemunhos de ex-acolhidos e responsáveis por casas de acolhimento com quem a associação trabalha.
João Pedro recua 23 anos, de novo. "Cheguei a casa e disse que no dia seguinte já não iria, porque não conseguia dar respostas a tantas solicitações. No dia seguinte fui lá só para mostrar que tinha razão, que aquele não era o meu sítio. Mas os vínculos foram sendo criados, e mantêm-se até hoje, com muitos deles". Como com Éder, que era um desses meninos, e que no ano de nascimento da PAJE foi autor do golo que tornou Portugal campeão europeu de futebol. Foi quando se tornou também padrinho da PAJE. "Ainda hoje falamos muito", conta o presidente e amigo.
"Fui percebendo que quando saiam do acolhimento é que os problemas verdadeiramente surgiam. Fiquei com essa perceção empírica, porque não havia apoio de retaguarda", recorda. Foi quando decidiu fazer um doutoramento na faculdade de psicologia da universidade de Coimbra, o primeiro sobre desinstitucionalização. Como era "um palavrão muito difícil de pronunciar na sala dos Capelos", resolveu substitui-lo por "autonomização". Nessa sua tese, que terminou em 2014, abordou as transições para o pós acolhimento. E aí, era claro que havia um padrão comum, que era a falta de um apoio "cá fora". "Mais uma vez, só fazia sentido o que tinha estudado se o pusesse em prática. Houve um grupo de pessoas fantásticas que me ajudou a criar a PAJE", a tal associação sem fins lucrativos, que nasceu em 2016.
Até hoje, já apoiou cerca de 300 jovens, alguns pontualmente , com alguma regularidade, outros de tempos a tempos, "sempre que a situação piora", seja na parte do acompanhamento psicológico, no aconselhamento; "por exemplo agora, na pandemia, porque ficarem sem emprego, ou porque há uma situação complicada, em que o pai dos filhos deixou de pagar a pensão de alimentos, outros apoiamos com medicação, inclusive psiquiátrica, e sabemos como isso é importante". Mas há outros apoios. Por exemplo, as visitas nas prisões. "Tantas vezes somos a única visita. Costumo dizer por brincadeira que tenho mais cartões das prisões na minha carteira do que cartões multibanco. Se algum dia me roubam, devolvem-na logo".
Na carteira e no coração, João Pedro Gaspar guarda outra coisas. Histórias com final feliz. "Adoro ser acordado às três da manhã para me dizerem que foram pais. E a primeira pessoa a quem ligam é para mim. Ou para dizerem que conseguiram tirar a carta, ou para mostrarem o carro novo". Pelo caminho, a PAJE já conseguiu mais de 60 postos de trabalho. "E isso não é apenas conseguir empregos, é fazer cumprir horários, o respeito pelas hierarquias, a responsabilidade, a motivação, e só depois então é que ajudamos a construir o seu currículo".
Para lá do apoio que a PAJE e os seus voluntários estão sempre prontos a oferecer aos jovens ex-acolhidos, há aquele que lhes escapa. João Pedro recorda que, por exemplo, a população reclusa tem mais de 30 entidades envolvidas nesse trabalho, ao passo que "as vítimas precoces, que têm a vida toda para sofrer as consequências, não tem mais nenhuma entidade que dê suporte. O que nós queremos é descriminação positiva. Mesmo para estágios profissionais, se for vítima de violência doméstica tem uma majoração, um ex-recluso também; aqui falamos de jovens adultos que, se em criança viram dois direitos serem sonegados - o direito a crescer em família e depois por isso algum mau trato aconteceu e lhe foi retirado, que levou ao acolhimento - e perante isso mereciam uma descriminação positiva".
Em todo o trabalho da PAJE está sempre a meta de tentar melhorar o perfil de saída dos jovens enquanto estão acolhidos. "Tentamos não ser precisos", sublinha João Pedro Gaspar, aludindo à importância de que "durante o tempo em que estão institucionalizados os jovens sejam preparados para isso. Isto passa por dar formação aos cuidadores. A forma como se dá um pão com manteiga pode fazer muita diferença na questão pedagógica, por exemplo", frisa.