Paisagem verde e negra, oitenta anos e um casamento

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Os primeiros sinais surgem ainda antes da estação de serviço de Aveiras. Fumo escuro ao longe, no dia a seguir a ter ouvido na rádio: "A Proteção Civil alerta para o risco de incêndios nos próximos dias, com tempo seco e temperaturas elevadas." Entrámos na segunda metade de novembro, o São Martinho já lá vai, e as previsões meteorológicas a teimar em mostrar pequenos sóis sorridentes, quase trocistas, como caras de palhaços pintados e assustadores. Nem uma nuvem. Só aquele fumo escuro ao longe, muito antes da serra dos Candeeiros, cada vez mais espalhado.

Cada vez mais perto, também, a origem da mancha de um cinzento-acastanhado, se é que essa cor pode ser assim descrita. Da estrada, não consigo perceber de onde vem, se de um edifício ou de um grupo de árvores. Parece um foco pequeno, apesar da fumarada. Continuo para norte e perto de Leiria vejo árvores ardidas, aquelas que obrigaram ao corte da A1 há pouco mais de um mês. Desta autoestrada pouco se vê, não se vislumbra o pinhal de Leiria que o fogo destruiu, mais para o lado do mar. Reencontro árvores sãs e verdes, outras de folhas avermelhadas ou amarelas como o outono manda. E é como se fosse uma bênção, uma alegria, esta visão verde de pinheiros e eucaliptos antigos a perder de vista.

Eu sabia que esse verde não ia durar muito. É nas proximidades da Mealhada que tudo se torna preto, cinzento, ou de um castanho mortiço. A marca deixada pelo fogo ao longo de quilómetros e quilómetros, mais extenso ainda do que dias antes tinha visto noutra autoestrada, a A23, na zona de Envendos. Pensei então que era preferível viajar de noite, porque à noite todas as árvores são pardas e não damos pelas cicatrizes. Mas agora sinto que preciso de ver esta louca área negra, hesito entre sair para outras estradas e seguir o rasto do fogo, talvez passar pela pungente estrada da morte. Mas não posso, tenho horas para chegar e trabalho para fazer.

Imagino como foi toda esta superfície a arder, o medo, o combate que pressinto num grupo de pinheiros que só tem verde no topo, nas madeixas de verde que sorriem porque sobreviver é preciso. E depois entrevejo um grupo de eucaliptos altíssimos, ardidos e com os troncos forrados de rebentos que me parecem subir em espiral, mas não, é só uma imagem que estou a inventar como se fosse uma iluminação de Natal. Será que desde aquele incêndio houve tempo para estes rebentos explodirem assim?

Finalmente chego a Matosinhos, o meu destino, para ver a Casa da Arquitetura pronta a abrir as portas, a mostrar exposições, a guardar tesouros. Numa rotunda fico atrás de um Rolls-Royce engalanado de flores brancas, eu no meio de um cortejo de casamento, e quando estaciono passam por mim os convidados, também eles engalanados à sua maneira, e penso que gosto desta espécie de boas-vindas.

E diante de mim está a casa, serena e simples como se continuasse a ser a Real Vinícola do passado, com gente a trabalhar de um lado para o outro. E oiço o arquiteto Guilherme Vaz, que está a dizer: "Este edifício esteve abandonado oitenta anos, estava em ruínas. E nas ruínas nasceram dois ulmeiros enormes - oitenta anos é um tempo próprio para as árvores crescerem assim - que mantivemos e até nos permitiram criar pátios para descanso e conversa." E do resto não falo porque esta é uma casa para visitar demoradamente.

Daqui a oitenta anos, como estarão aqueles campos enegrecidos e tristes? Saberemos repovoá-los, fazer da tragédia um momento de renovação? E o clima, que tão estranho está neste ano de 2017, como será em 2097? Saberemos resolver estes caminhos que hoje parecem sem retorno?

Na semana passada, estive num paraíso de água, Monfortinho, entre granito e xisto, águias e abutres espreitando sempre do céu. Com poucos turistas porque não é o tempo deles, passeei em Monsanto e toquei as pedras quentes de São Pedro de Vir a Corça, molhei as mãos nas piscinas naturais de Penha Garcia, frescas e vivas. Ouvi as histórias de veados e javalis que se aproximam das povoações porque a seca os deixa sem comida. E mergulhei nas termas, maravilha antiga e reconfortante. O milagre da água, numa terra despovoada.

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