Há muito para elogiar nos que, sem perspectivas de lucro imediato, de retorno garantido, de negócio fácil, sabem aproveitar - e reciclar - o património acumulado noutras eras. Ora, numa fase em que a Poesia se reergue, muitas vezes por vias "alternativas", de esquecimentos e atropelos, merece inteiro destaque a iniciativa da editora Valentim de Carvalho, que decidiu regressar, em edições "revistas e aumentadas", ao seu magnífico espólio de gravações de poetas. Originalmente, na colecção publicada entre 1959 e 1975, o desafio era grande - cabia aos autores a responsabilidade de dizerem as suas próprias criações, acabando por personalizá-las ainda mais, injectando sangue próprio às palavras que já antes tinham posto ao nosso dispor..O regresso desta série, Dizem os Poetas, já passara por três nomes incontornáveis: David Mourão-Ferreira, Alexandre O'Neill e António Gedeão. Junta-se-lhes, por estes dias, mais um dos mestres, Mário Cesariny. Outros se seguirão - casos de Sophia de Mello Breyner Andresen, Jorge de Sena, Natália Correia e José Carlos Ary dos Santos, entre vários. Mas há, ainda, um valor acrescentado que merece ser sublinhado: se, na "primeira volta", os discos se ficavam pelas vozes de quem escrevia, a minutagem dos CD permite que se vá mais longe, chamando aos microfones algumas das vozes da nova geração que dão continuidade a uma arte que nos enche as medidas, correspondendo à ideia de que a Poesia ainda marca mais pontos quando é dita e ouvida, face à simples leitura. Ana Brandão, Isabel Abreu, Carla Bolito, Miguel Loureiro, Rui Portulez e Pedro Lamares são alguns dos "convocados" para esta aventura, para este mergulho no universo de cada um destes "guias", que seria criminoso e disparatado não desfrutar em pleno..Para quem cresceu a descobrir os múltiplos alcances da Poesia através de alguns dos seus protagonistas - recordo em margem de erro a escuta familiar das vozes de Miguel Torga, com a sua gravitas transmontana, de Sophia, com a sua dicção imaculada, de Manuel Alegre, com a profundidade épica da sua leitura, ainda por cima em parceria com a guitarra de Carlos Paredes -, para quem se deixou guiar por diferentes "faróis" no domínio daqueles a que se chamava, talvez com demasiada pompa e circunstância, os "declamadores", mas que sempre senti como autênticos intérpretes - primeiro João Villaret, depois Mário Viegas, enfim Luís Miguel Cintra, sempre Eunice Muñoz -, este exercício editorial equivale a uma festa. Porque, ao mesmo tempo que deixa acessível aquilo que parecia perdido nas "brumas da memória" (passe a expressão e fique a ideia), acaba por nos tocar como uma esperança de que não se continue a olhar, e a ouvir, a Poesia como algo que fica nos antípodas do Pão, como se fizesse algum sentido esta oposição. Quando a Poesia também é Pão. E quando, se não somos, de todo, um "país de poetas", disparate que se expande sempre que confundimos Poesia com versos e rimas, seremos um país francamente melhor "com" os poetas mantidos no activo..Escreve de acordo com a antiga ortografia
Há muito para elogiar nos que, sem perspectivas de lucro imediato, de retorno garantido, de negócio fácil, sabem aproveitar - e reciclar - o património acumulado noutras eras. Ora, numa fase em que a Poesia se reergue, muitas vezes por vias "alternativas", de esquecimentos e atropelos, merece inteiro destaque a iniciativa da editora Valentim de Carvalho, que decidiu regressar, em edições "revistas e aumentadas", ao seu magnífico espólio de gravações de poetas. Originalmente, na colecção publicada entre 1959 e 1975, o desafio era grande - cabia aos autores a responsabilidade de dizerem as suas próprias criações, acabando por personalizá-las ainda mais, injectando sangue próprio às palavras que já antes tinham posto ao nosso dispor..O regresso desta série, Dizem os Poetas, já passara por três nomes incontornáveis: David Mourão-Ferreira, Alexandre O'Neill e António Gedeão. Junta-se-lhes, por estes dias, mais um dos mestres, Mário Cesariny. Outros se seguirão - casos de Sophia de Mello Breyner Andresen, Jorge de Sena, Natália Correia e José Carlos Ary dos Santos, entre vários. Mas há, ainda, um valor acrescentado que merece ser sublinhado: se, na "primeira volta", os discos se ficavam pelas vozes de quem escrevia, a minutagem dos CD permite que se vá mais longe, chamando aos microfones algumas das vozes da nova geração que dão continuidade a uma arte que nos enche as medidas, correspondendo à ideia de que a Poesia ainda marca mais pontos quando é dita e ouvida, face à simples leitura. Ana Brandão, Isabel Abreu, Carla Bolito, Miguel Loureiro, Rui Portulez e Pedro Lamares são alguns dos "convocados" para esta aventura, para este mergulho no universo de cada um destes "guias", que seria criminoso e disparatado não desfrutar em pleno..Para quem cresceu a descobrir os múltiplos alcances da Poesia através de alguns dos seus protagonistas - recordo em margem de erro a escuta familiar das vozes de Miguel Torga, com a sua gravitas transmontana, de Sophia, com a sua dicção imaculada, de Manuel Alegre, com a profundidade épica da sua leitura, ainda por cima em parceria com a guitarra de Carlos Paredes -, para quem se deixou guiar por diferentes "faróis" no domínio daqueles a que se chamava, talvez com demasiada pompa e circunstância, os "declamadores", mas que sempre senti como autênticos intérpretes - primeiro João Villaret, depois Mário Viegas, enfim Luís Miguel Cintra, sempre Eunice Muñoz -, este exercício editorial equivale a uma festa. Porque, ao mesmo tempo que deixa acessível aquilo que parecia perdido nas "brumas da memória" (passe a expressão e fique a ideia), acaba por nos tocar como uma esperança de que não se continue a olhar, e a ouvir, a Poesia como algo que fica nos antípodas do Pão, como se fizesse algum sentido esta oposição. Quando a Poesia também é Pão. E quando, se não somos, de todo, um "país de poetas", disparate que se expande sempre que confundimos Poesia com versos e rimas, seremos um país francamente melhor "com" os poetas mantidos no activo..Escreve de acordo com a antiga ortografia