Padrão resgata memórias do Mundo Português

28 pessoas que visitaram a Exposição do Mundo Português, em 1940, recordam o cheiro a tinta ou o som dos remos dos barcos no Tejo. Mas também o racionamento do tempo de guerra ou as idas ao cinema. Um exercício de memória que dá uma exposição.
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"A correr ao aparelho/ a petizada até voa/ para ouvir as emissões/da Voz de Lisboa." Os 86 anos de Emília Carlos não a impedem de entoar, sem qualquer hesitação quanto à letra, o jingle do programa da Emissora Nacional que os mais novos ouviam em 1940, ano em que visitou a Exposição do Mundo Português. Uma das muitas memórias que 28 pessoas partilham com quem visitar, até 30 de outubro, a exposição Fora do Padrão. Lembranças da Exposição de 1940, que hoje é inaugurada no Padrão dos Descobrimentos.

Antes de continuarmos, um ponto prévio, para que não fiquem quaisquer dúvidas: esta não é uma mostra sobre a Exposição do Mundo Português. É, isso sim, uma exposição formada a partir de "memórias de 28 crianças e adolescentes, que não só visitaram a exposição como foram a parques, ao cinema, lembram-se da guerra, do racionamento, de ver a exposição de fora, lembram-se dos sons, de ver as coisas de baixo, dos cheiros, dos animais, dos crocodilos [do Tanque do Jardim Colonial], do teleférico", concretiza Marta Prista, do CRIA - Centro em Rede de Investigação em Antropologia.

Ao longo de um ano, uma equipa deste centro da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, coordenada por Maria Cardeira da Silva, entrevistou pessoas que na sua infância ou adolescência visitaram a exposição realizada pelo regime de Oliveira Salazar para comemorar a data da fundação do Estado Português (1140) e da Restauração da Independência (1640).

"O coração da exposição são os testemunhos das pessoas", destaca Maria Cardeira da Silva. E, por isso, logo à entrada, num primeiro ecrã, cada uma das 28 pessoas - "as quais consideramos coautores desta exposição", refere a antropóloga -, apresentam-se através de um brevíssimo testemunho no qual houve a preocupação de criar o contexto social de cada um. Feitas as apresentações, seguem-se mais quatro núcleos sobre os temas mais referidos nas entrevistas.

Encontrar pessoas que tivessem visitado a exposição, revelou-se tarefa mais fácil do que esperavam inicialmente. A maior dificuldade foi mesmo a idades dos entrevistados. Surpresas, houve algumas. Por exemplo, "as pessoas guardam menos coisas do que nós gostaríamos", refere Marta.

Fotografias e objetos, que a equipa procurou partindo das memórias das pessoas dando assim espaço aos sentidos e às emoções relatadas, formam a exposição, juntamente com os testemunhos.

Outra surpresa: "Estamos muito habituados a uma memória quase exclusivamente centrada na escrita e no olho. E, de facto, percebemos que há memórias de outros sentidos: do cheiro forte do café do Pavilhão do Brasil, de paladares, de espanto, de medo e o núcleo O Espanto e os Sentidos reúne um pouco todas essas sensações", explica Maria Cardeira da Silva.

Aqui, outra surpresa: a revelação da existência de um teleférico que ligava a zona junto à margem do Tejo ao alto do Jardim Tropical. "Nunca encontrámos qualquer referência a esse teleférico nas fontes oficiais e, inicialmente, até duvidámos um pouco dessa memória que nos foi transmitida por alguns dos entrevistados. Mas depois encontrámos uma fotografia e até imagens num videoamador", explica Marta Prista.

Segue-se Guerra e Recreio, "dois polos que balizam o dia-a-dia das pessoas", onde "se pretende mostrar que sabiam da guerra, sofriam os seus efeitos e também os efeitos do próprio regime, mas, apesar disso, tinham atividades de lazer e a vida social continuava", indica Maria Cardeira da Silva.

"A dualidade que caracterizava a visão que o regime dava de Portugal - um país provinciano e tradicional mas também um país moderno e cosmopolita - é o tema do quarto núcleo, O Tanque e o Tejo, onde se encontram imagens e testemunhos dessas duas vivências", conduz a antropóloga, antes de se entrar no último momento expositivo, Lembrar, Deslembrar, Voltar a Lembrar. Aqui, os entrevistados mostram "a importância de construirmos as nossas próprias memórias em vez de darmos lugar aos outros para as construírem".

Mas a exposição não termina aqui, esperam as antropólogas: "Este não é um projeto acabado. A ideia é que esta exposição abra um bocadinho uma caixa para que outas pessoas nos enviem memórias sobre este espaço monumentalizado de Belém." E já há caixa, de mail, para receber essas recordações: arquivoforadopadrao@egac.pt.

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