Ozu a arrebatar-nos de mansinho

Nos 120 anos do nascimento de Yasujiro Ozu, a Leopardo Filmes lança duas obras-primas do cineasta japonês inéditas comercialmente nas salas portuguesas: <em>História de um Proprietário Rural </em>e <em>Crepúsculo</em> em Tóquio. Regozijemo-nos.
Publicado a
Atualizado a

Na sessão recente do último LEFFEST em que foi apresentado em antestreia História de um Proprietário Rural, a sala do cinema Nimas estava não só muito bem composta como o público, de diferentes faixas etárias, parecia responder por instinto a uma agradável sincronização. Ríamo-nos timidamente dos mesmos gestos ou expressões das personagens, e guardávamos silêncio absoluto perante a confusão das atitudes daqueles adultos que no pequeno enredo do filme determinam o destino de uma criança. Isto é no mínimo raro de acontecer nos dias de hoje, em que cada espetador reage, ou não, com uma gargalhada quiçá efusiva àquilo que outro pode achar apenas néscio. O ponto é este: a partir da sua mais imediata simplicidade, um filme de Yasujiro Ozu tem o condão de criar um momento extraordinário, quase remoto das sensibilidades contemporâneas, e tornar uma sessão de cinema memorável pela mais modesta das razões, a comunhão suave da sala escura.

Com data de 1947, História de um Proprietário Rural foi a primeira produção assinada por Ozu no período pós-guerra. Um argumento que o próprio escreveu em 12 dias, pondo fim a um interregno de cinco anos (o mais longo da sua filmografia), quando ainda estava a consolidar o seu regresso ao Japão, depois do serviço militar e da fase em que foi mantido prisioneiro de guerra num campo de concentração britânico perto de Singapura. É este Ozu, não necessariamente mudado pelas experiências vividas, que nos dá um conto sobre... as mudanças que se podem operar no espírito. A história de uma viúva que acolhe com relutância um menino perdido, e quando dá por isso já se afeiçoou à sua presença timorata mas estoica, malgrado os xixis na cama.

Esta criança, com a roupa suja e o olhar silencioso, não precisa de fazer muito para espelhar no seu corpo a imagem daquele Japão destroçado, e a dar os primeiros passos da reconstrução, onde cada um por sua conta procura a ajuda do outro, especialmente na zona pouco favorecida dos arredores de Tóquio que ambienta o filme. E como sempre em Ozu, os espaços domésticos e a comunidade retratada são o foco da sua atenção; o modo como aquelas pessoas - sobretudo as que dizem sem paninhos quentes "não gostar de crianças" - se desfazem do jugo do egoísmo e transformam a vivência comunitária na dinâmica de uma família improvisada. A cozinha aberta da viúva funciona, aliás, como o seu espaço de autoridade, com o fogão invariavelmente a fumegar, qual sinal de conforto caseiro, em contraste com a dureza do seu rosto no princípio. Mas desengane-se quem vislumbra aqui um Ozu de inocente coração mole, a socorrer-se de manobras sentimentais. Isso não existe no seu cinema de técnica e drama depurados. O invólucro ténue de comédia humana arrefece a espaços as emoções, e talvez por esse motivo a cena da separação (da viúva e do menino) chegue com um embate tão forte quanto sereno. Mestre do quotidiano agridoce, o realizador arrebata-nos de mansinho.

Por sua vez, Crepúsculo em Tóquio (1957), a outra obra-prima de Yasujiro Ozu inédita comercialmente nos nossos cinemas, surge como ouro sobre azul. Um filme de uma carga melodramática surpreendente, mesmo para os padrões do seu universo familiar, com uma personagem feminina (belíssima Ineko Arima) que desafia o típico "recato da dor" das suas personagens femininas, levando a angústia existencial a um ponto de intensidade sem retorno.

Ao contrário de História de um Proprietário Rural, este é um Ozu urbano em todos os sentidos, na linha de Viagem a Tóquio, mas com a dita veemência emocional inesperada e magnetizante a refletir-se em duas irmãs que atravessam distintas fases da vida. Setsuko Hara, atriz eterna desta domesticidade, só podia vestir aqui a pele da irmã mais velha, que regressa com o seu bebé à casa do pai, na sequência de uma zanga com o marido, enquanto Ineko Arima, a mais nova, carrega o segredo de uma gravidez que a faz perder o rumo na cidade impregnada de melancolia. Entre uma e outra, o pai (também um habituée, Chishu Ryu) tenta manter a ordem natural das coisas, a ordem japonesa, sem que a sua interferência se faça notar em demasia. Ele, o homem que criou sozinho as filhas, depois de a mulher ter abandonado o lar, e que não se apercebe do sobressalto do passado prestes a abalar a estrutura frágil do presente. Magnífico melodrama, último filme a preto-e-branco de Ozu, até nisso é levado ao pico de uma linguagem visual: a sombra que se abate sobre as costas das personagens quando choram é de uma delicadeza sublime. Como se a câmara proporcionasse um gesto de consolo, ao mesmo tempo que respeita a solidão inconsolável da dor.

Tanto História de um Proprietário Rural como Crepúsculo em Tóquio, ambos estreias em cópias restauradas, integram um ciclo comemorativo dos 120 anos do nascimento de Ozu, que assinala também as seis décadas da sua morte, no mesmo dia: 12 de dezembro. Uma nova oportunidade para redescobrir em sala este cinema "transcendental", como o apelidou Paul Schrader.

dnot@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt