Outra forma de ver o veto

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Cavaco Silva promulgou a lei que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Depois de um discurso duro de reprovação, alertando para o perigo das fracturas num momento de profunda crise, que poderá mesmo vir a tornar-se "explosiva", o Presidente anunciou que iria promulgar a lei. Terá sido uma manobra de oportunismo político? Tentativa de conquistar o "centrão"? Não me parece. A ser um gesto calculado para ganhar votos - quaisquer que fossem -, Cavaco teria tomado uma de duas opções: a promulgação da lei sem grandes justificações ou o recurso ao veto. Numa lógica de cálculo eleitoral, o que Cavaco fez - discordando duramente, mas promulgando a lei - é o pior dos dois mundos.

O veto presidencial é um instrumento importantíssimo, e mais importante em tempos como os que agora vivemos. A sua utilização obriga a um exercício de ponderação e discernimento entre o fundamental e o acessório. E no seu discurso, para quem ouviu com atenção, Cavaco alerta para os perigos dos "acessórios" num tempo que não deve ser de fractura, mas de coesão. No fundo, o dilema do Presidente reflecte a dicotomia weberiana entre a ética da convicção - que parte da esfera pessoal e estabelece os princípios como imperativos da acção política - e a ética da responsabilidade - em que pesam as circunstâncias, a análise dos riscos e eficácia dos meios. Neste caso, a segunda prevalece não em nome de uma manobra de oportunismo, mas do superior interesse do País.

Os vetos de Cavaco têm assentado em considerações de natureza jurídico-constitucional, de equilíbrio de poderes, ou então como única resposta a leis que, pela sua falta de qualidade jurídica, não poderiam ser promulgadas (o caso da lei das uniões de facto). Mas Cavaco também vetou com base em considerações ideológicas - ou de convicção - quando entendeu que as consequências da lei, pela sua gravidade, justificavam tal opção. Foi o caso do veto à Lei do Divórcio, em Agosto de 2008, uma lei que, como Cavaco alertou, vem retirar a protecção aos elos mais fracos e vulneráveis e, através da lógica do crédito de compensação, converter o casamento numa espécie de exercício de cálculo e contabilidade, desvirtuando-o nos seus fundamentos.

É também isto que se espera de um Presidente, que tenha uma agenda política que defina valores e convicções e que - inevitavelmente - esses valores e convicções acabem por chocar com os dos cidadãos que representa. Por isso, se muitos daqueles que eram favoráveis à lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo se desiludiram com o discurso de Cavaco, muitos dos que são contra esta lei sentiram-se "traídos" pela promulgação. O exercício que resultou nesta decisão talvez tenha sido um cálculo sobre a real relevância - e as reais consequências - da promulgação da lei, num cenário que era de inevitabilidade, como o próprio Presidente reconheceu.

Com a promulgação da lei, Portugal passa a ser o oitavo país no mundo a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Assim, para os defensores desta causa, saltamos subitamente de país de atraso, preconceito e obscurantismo para a "vanguarda" da luta pela igualdade. Mas, de facto, esta lei pouco vem mudar. Não muda o casamento nem a família, realidades que permanecem anteriores ao Estado e ao legislador, limitando--se a criar uma realidade que não é uma coisa nem outra. Para além disso, nos outros países em que leis semelhantes foram aprovadas, foram relativamente poucos os casais homossexuais que de facto se casaram. Neste caso, a lei - corolário de uma batalha por um símbolo - é mais um fim que um meio. Um fim que visa lutar contra os fantasmas da discriminação, mas que vem, ironicamente, consagrar a existência de casamentos de primeira e casamentos de segunda, numa tentativa falhada de tratar igualmente o que o não é. Ora a lei, só por si, não mudará esta realidade. Do mesmo modo que o veto, só por si, não protegeria os símbolos de usurpações indevidas.

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