Ouçam Madonna (e não estou a falar do que canta)
Que lugar certo um mirador desolado e aberto ao mundo, interiores escuros e com graffiti, encandeado pela luz que jorra dos vidros partidos e panorâmicos, que lugar para um ídolo pop universal falar aos homens e mulheres, daqui e d'além-mar! Madonna subiu ao restaurante de Monsanto, abandonado vai para 20 anos, e falou-nos como se da capital do mundo. Dali, ela fez um fascinado, e sem vergonha, documentário sobre Lisboa, a propósito do seu novo álbum, Madame X.
Não respondo sobre as músicas, os leitores merecem melhores críticos. Mas sou o maior especialista de mim próprio, português, assunto sobre o qual se debruçou a diva. Por isso, desvanecido, aqui estou, enquanto lá em baixo, se imaginam os fenícios, os romanos e os árabes que chegaram e, depois, os navegadores que partiram ainda para mais longe. A nascente, o Mar da Palha, a sul, as gares marítimas e, a poente, a boca do Tejo - de onde, ainda ontem, anos 1930, partiram os hidroaviões e os navios que libertaram europeus. Pelos subúrbios a toda a volta, os chegados nossos imigrantes.
Durante tudo isso, Lisboa, porto. Tanto chegar e partir entra inevitavelmente por nós adentro. Madonna, a da pala, a das meias de renda furadas, a do cabelo oxigenado, a tão aparência, afinal foi direita ao essencial. O documentário abre com guitarras e ela a dizer: "Estou em Lisboa." Não Lisboa isto ou aquilo, mas "estou em Lisboa" como um nome que anuncia um destino.
Não é conversa barata, ela explica o caminho por que passou: "Comecei a sentir-me frustrada, como artista e... um pouco solitária." Já lhe acontecera, diz, quando aos 19 anos chegou a Nova Iorque. Fiquei embevecido com a comparação. Com as cidades que logo entendemos arriscamo-nos a que se revelem aborrecidas. Madonna perguntou pelo caminho mais seguro: "Onde está a música?" Dino d'Santiago, algarvio da Quarteira, filho de cabo-verdianos, português típico, levou-a pelo caminho mais tradicional, fado e morna. A neófita não era tão like a virgin assim: "Sempre fui fã do fado e da morna e vinha acompanhando a Cesária Évora desde a minha adolescência."
Reparo na mentirinha. Na adolescência de Madonna, recente sexagenária, Cesária ainda só tinha um 45 rotações gravado, Mornas de Cabo-Verde & Oriondino, disco secreto, nem os filhos e netos dos grandes jazzistas cabo-verdianos da América haveriam de o conhecer. Mas que importa se, quando Madonna diz isto no documentário, toca Sodade e se fala do caminho para São Tomé. E Madonna continua: "Não foi só fado e morna, mas funaná e música de Angola." Tão direito à Lisboa que só olissipógrafos atualizados conhecem. "Tenho de agarrar o que estou ouvindo e virar tudo de pernas para o ar." Ao fundo, ouvem-se trinados e tambores. Soa e bate certo.
Já ela dissera: "Vim para Lisboa por causa do meu filho." Emigra-se tanto por isso, Madonna. "Vim por causa da paixão dele pelo futebol", acrescenta. Para os nossos filhos terem o que não tinham se chega aos portos, já sabíamos. E também os filhos das famosas, sabemos agora. E ela insiste: "Estou feliz por estar aqui e pela carreira futebolista do David" - tão lindo, ouvir gente poderosa iludida como nos sonhos nas barracas do Casal Ventoso. "Desembarquei num mundo mágico", diz Madonna, já não sabemos se de palcos ou relvados... Como uma lavadeira que estende a roupa.
Para fazer música em Portugal, ela diz ouvir música de Cabo Verde, do Brasil e de Angola: "E percebi que está tudo muito ligado." Parem as máquinas, esta mulher chegou a Lisboa e viu-a.
No documentário, lisboetas negras batem tambores, por cima de Monsanto ouve-se batuque. "Estou em Lisboa", diz. Eu que sempre me menti a tocar sax num telhado de Nova Iorque, gostei tanto de a ouvir gabar-se.