Otay Mesa: o "ground zero" do (novo) muro de Trump

Em Otay Mesa, San Diego, Califórnia do Sul, deverão ser erguidos os protótipos do muro de Trump. Mas, como ali já existe um muro, ou melhor, dois, há vários anos, muitos não sabem o que quer o presidente dizer exatamente quando diz que vai construir um novo muro - "grande e bonito" - entre os EUA e o México
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Logo de manhã cedo, longas filas de trânsito enchem as estradas na zona de fronteira entre os EUA e o México. Do lado de cá, San Diego, do de lá Tijuana. 30 km apenas separam uma e outra. E um muro, ou melhor, dois muros, que já existem há vários anos. Um é feito de placas de aterragem para aviões e helicópteros que sobraram do tempo da Guerra do Vietname. O outro, com quase cinco metros de altura, é uma vedação com arame farpado. No meio, uma espécie de terra de ninguém, vigiada por câmaras e sensores. E, à volta, uma área patrulhada por milhares de agentes da US Border Patrol (guarda fronteiriça dos EUA). Aqui fica a fronteira terrestre mais movimentada do mundo, no ponto de passagem de San Ysidro. Através dele e do de Otay Mesa, que fica situado a apenas 10 km, passam todos os dias cerca de cem mil pessoas. Habituados à dupla vedação, às inspeções e às filas de trânsito, muitos são os que, na grande San Diego, Califórnia do Sul, se interrogam sobre o que quer dizer exatamente o presidente Donald Trump quando garante que vai construir um novo muro - "grande e bonito" - entre os Estados Unidos e o México. Independentemente de concordarem ou não com o que está na génese da ideia.

"Não é um novo muro. Mas reparações no já existente. Não sei bem onde. É um gesto puramente simbólico. A imigração ilegal, nesta zona da fronteira, tem vindo a cair, de forma consistente, durante anos. Muita da imigração ilegal são casos de pessoas que entram legalmente com um visto e depois simplesmente ficam nos EUA depois de a validade deste já ter expirado. Tem havido túneis escavados por baixo das vedações - muitos ligados ao tráfico de droga -, talvez devesse haver aí investimento para ter mais vigilância", diz ao DN Christian Ramírez, diretor de Direitos Humanos da Alliance San Diego. Natural de Tijuana, com dupla nacionalidade, o advogado, de 40 anos, foi uma das pessoas que a 21 de abril se manifestaram na zona de fronteira contra a ideia de Trump. Nesse dia o secretário da Segurança Nacional e o procurador-geral dos EUA, John Kelly e Jeff Sessions, respetivamente, estiveram de visita a Otay Mesa.

Segundo informação veiculada na imprensa norte-americana, que cita um relatório do staff democrata da comissão de Segurança Interna e Assuntos Governamentais do Senado, bem como um porta-voz da US Border Patrol, esta é a zona onde a Administração Trump quer testar o novo muro, ou seja, onde serão erguidos os protótipos. Os 20 finalistas já terão sido escolhidos pela US Customs and Border Protection (agência aduaneira e de proteção de fronteiras dos EUA) entre mais de 400 propostas submetidas por empresas. Deverão ser identificados em breve e apresentar projetos mais detalhados, indo o governo depois escolher quais os protótipos que serão construídos. Estes deverão ter cerca de dez metros de altura, serem impossíveis de transpor e impossibilitar que sejam escavados túneis até uma profundidade de pelo menos cerca de dois metros. Segundo aquele mesmo relatório, os contratos deverão ser adjudicados a 14 de junho e a construção dos protótipos começar oito dias depois, devendo estar pronta a 22 de julho. Mas, mais do que saber como, importa saber com que dinheiro e efeito.

"O presidente prometeu, em grande parte da sua campanha, construir um muro grande e bonito. Primeiro disse que era o México que iria pagá-lo, mas sabíamos que era pouco provável, então a segunda entidade que teria de pagar pelo muro seria o Congresso - ou seja, os contribuintes -, mas o Congresso aprovou uma lei orçamental que não contempla financiamento adicional para o muro. Ele queria três mil milhões de dólares e só conseguiu 1,5 mil milhões, mas nada pode ser usado para construir um novo muro. Isso deixou-o só com uma opção: usar fundos discricionários que tem, enquanto presidente, do poder executivo, para reparar as vedações já existentes. Ele vai ter de usar estes fundos que tem ao seu dispor", assinala Christian, referindo-se ao facto de os republicanos terem deixado cair o financiamento adicional para o muro para conseguirem o apoio dos democratas para a lei orçamental. Caso contrário, poderia haver uma situação de shutdown (governo deixa de funcionar por falta de dinheiro disponível).

A par dos democratas, alguns republicanos também não estão dispostos a alocar 21,6 mil milhões de dólares (19,7 mil milhões de euros) para construir um muro que Trump garantiu que custaria no máximo 12 mil milhões (quase 11 mil milhões de euros). E, segundo aquele relatório do staff democrata da comissão de Segurança Interna e Assuntos Governamentais do Senado, o custo total poderia ir aos 70 mil milhões de dólares (64 mil milhões de euros), sem contar com manutenção. Isto para um muro que cobrisse cerca de três mil quilómetros de fronteira EUA-México, atravessando os estados norte-americanos vizinhos do país latino-americano liderado por Enrique Peña Nieto: Califórnia, Arizona, Novo México e Texas. "Se os democratas soubessem o que andam a fazer teriam aprovado. Obviamente que eles não se importam com os imigrantes ilegais e a droga que entra", disse Trump ao não receber luz verde para o financiamento adicional do muro.

Esther Valdes tem uma ideia de como arranjar dinheiro. "Os imigrantes mexicanos mandam para casa remessas de 70 mil milhões de dólares. Se os EUA taxarem essa receita poderão construir o muro. Acredito que o muro deve ganhar uma nova dimensão, mas como contribuinte não concordo que se gastem milhões", refere ao DN a advogada de 42 anos. Filha de imigrantes vindos de Tijuana, nascida nos EUA, Esther acaba de vir do centro de detenção de Otay Mesa, onde se encontram alguns dos seus clientes, precisamente imigrantes ilegais. Em 2013 foi notícia o processo de asilo que ganhou para uma família que estava ameaçada no México por não compactuar com o narcotráfico na zona onde vivia. "Porque é que o governo do México, em vez de dar dinheiro para advogados, não arranja às pessoas uma casa e um emprego? É preciso ver a origem do problema, a fome, a pobreza, os homicídios, a origem de todos esses problemas está no México. 90% dos crimes no México não são solucionados. Muitos mexicanos, como os meus pais, queriam ter podido ficar lá", garante, dizendo que não há divisão entre as pessoas mas sim entre dois governos. Esther Valdes defende imigrantes ilegais, não só mexicanos, pois acaba de ganhar direito de asilo para duas raparigas iraquianas cristãs (em San Diego existe uma enorme comunidade iraquiana). Mas como membro do Partido Republicano defende o que defende Trump. E não vê aí nenhuma contradição.

"Não é preciso viver nos EUA para se ser americano. A democracia não pertence aos americanos, é uma ideia que exportamos. A América é uma ideia", sublinha a advogada, concordando com a decisão de banir a entrada nos EUA de pessoas oriundas de seis países de maioria muçulmana (Síria, Irão, Líbia, Iémen, Sudão e Somália). "Quem identificou os países do chamado ban foi a administração de Barack Obama. Mas quando o presidente o aplicou disseram que era um ban antimuçulmano? 98% dos muçulmanos continuam a poder entrar neste país. A ideia de que estavam a ser banidos foi uma construção feita pelos media", afirma, admitindo que a ordem executiva era vaga e pouco clara quanto à execução. E sobre o que Donald Trump disse sobre as mulheres e os mexicanos? Como mulher de origem mexicana isso não a chocou? "Perguntam-me porque votei nele. Há dois anos tivemos aqui um livro que se chamava As 50 Sombras de Grey, todas as mulheres andavam a lê-lo e gostavam da linguagem sexual e pornográfica, mas depois essas mesmas mulheres queixam-se de que ele se expressou de uma maneira pornográfica. As mulheres também falam assim dos homens. Trump não é perfeito. Disse muitas coisas mal sobre mulheres e mexicanos. Mas eu sou cristã e perdoo." Esther está convencida de que "o novo muro começará em Otay Mesa" porque "a principal função do governo é proteger o seu povo" e porque os EUA "estão em guerra contra o terrorismo".

Quem também estava em Otay Mesa quando Kelly e Sessions ali foram no dia 21 de abril era Eduardo Olmos, relações públicas da US Border Patrol. É um dos 2400 agentes que trabalham no setor de San Diego e são responsáveis por quase 100 km de fronteira (a nível nacional há 21 mil agentes da US Border Patrol e Trump anunciou que ainda quer recrutar mais cinco mil). "A nossa missão primária é travar ameaças terroristas, depois dos atentados 11 de Setembro de 2001. Mas também controlamos a imigração porque são pessoas que tentam passar e temos de saber por que querem entrar nos EUA. A maioria dos imigrantes estão aqui para trabalhar e ter uma vida melhor, mas os cadastrados não. O nosso trabalho é prender toda a gente que resiste à inspeção à entrada", explica ao DN, enquanto patrulha a zona junto à vedação na sua carrinha 4x4.

Agente há uma década, Eduardo Olmos, de 38 anos, cresceu entre San Diego e Tijuana e os guardas fronteiriços faziam parte do seu imaginário de criança e adolescente. Quis ser um deles. Faz turnos de dez horas numa semana de trabalho com cinco dias, anda geralmente sozinho (ao contrário de outras forças de segurança, nesta os agentes têm um trabalho muito solitário). "Vê aquele quadrado ali na vedação que estão a reparar agora? É onde os traficantes cortam o arame para tentar passar para este lado", aponta, acrescentando que neste ano já foram presas 15 078 pessoas no seu setor e descobertos quatro túneis (em 2016 foram presas 31 891 pessoas e, em 2008, 162 390, um recorde nos últimos 16 anos). A nível federal as apreensões neste ano estão, neste momento, nas 202 394 pessoas. No setor de San Diego 4767 dos 15 078 detidos não são de origem mexicana e na maior parte dos casos as detenções estão relacionadas com o tráfico de droga.

"Às vezes há mortos. Nalguns casos pessoas que são abandonadas pelos traficantes de imigrantes. Uma vez encontrei uma mãe com três crianças, na montanha, sem comida, sem nada, porque o traficante tinha levado tudo e dito que iria voltar. Era mentira. Estava a chover e estavam ensopados", afirma, explicando como se processa a escavação de túneis subterrâneos. "Os túneis começam a ser construídos em casas ali em Tijuana e terminam aqui deste lado dentro dos armazéns", refere, enquanto aponta para o aglomerado desordenado de casas que fica do outro lado da fronteira. Otay Mesa é uma zona sobretudo industrial, apesar de também ter áreas residenciais - e até condomínios privados. Negando acusações de que a conduta da US Border Patrol não é escrutinada, Eduardo explica como tudo se processa: "Se houver um tiroteio aqui quem investiga é a polícia de San Diego. Também é assim se houver corrupção. No ano passado houve um caso que tinha que ver com droga e foi investigado pelo FBI." E os narcotraficantes nunca o tentaram subornar para fazer vista grossa? "Não, a mim nunca me aconteceu."

Quando esteve em Otay Mesa, o secretário John Kelly prometeu lutar contra o tráfico de seres humanos e contra o tráfico de droga. "Vamos continuar a expandir a nossa abordagem contra a imigração ilegal. Isso inclui a construção de uma barreira física, apoiada por tecnologia e por patrulhas realizadas por forças profissionais. Também inclui perseguir todos os que paguem a traficantes que põem pessoas neste país, especialmente crianças. O tráfico coloca as pessoas em risco de sofrerem abusos e até de morrerem às mãos dos traficantes e coyotes", declarou o responsável da administração Trump. Coyote é uma pessoa que se dedica ao contrabando e tráfico de ilegais. Na música Welcome to Tijuana, Manu Chao cantava "con ele coyote no hay aduana" (com o traficante não há fronteira). A fronteira é, para Jeff Sessions, agora o "ground zero" e a "beachhead" (grau zero e cabeça de ponte) na luta contra os cartéis e gangues transnacionais. O uso deste tipo de terminologia militar foi criticado por organizações de defesa dos direitos humanos e pela oposição à administração de Trump.

"Cada vez que usam essa linguagem hiperbólica alimentam pessoas dos mais variados lados. Há milícias populares que patrulham a fronteira e têm armas e usar essa linguagem é dar a essas pessoas licença para atuar", sublinha ao DN Luis Osuna, advogado de 34 anos que, apesar de ter nascido em Tijuana, só tem passaporte dos EUA. Membro do Partido Democrata, conta que cresceu na Califórnia de Pete Wilson, governador republicano que esteve no poder entre 1991 e 1999. E diz que políticas duras para os filhos dos imigrantes, como as dele, explicam como o estado da Califórnia se foi virando para os democratas. Hillary Clinton venceu aí as presidenciais de 2016.

"Se Trump fosse mais inteligente, apostava na relação económica com o México, porque isolar o México não é a política mais acertada. Está-se a perder o significado da economia binacional que aqui existe nesta zona. Todos acham que as fronteiras devem permanecer abertas para o bem da economia. Trump, como homem de negócios, que diz sempre que é, deveria perceber a importância disto. Os imigrantes são 31% do PIB da Califórnia", nota, sublinhando que quem é contra os imigrantes não percebe que "as coisas são baratas, a comida, por exemplo, por causa da mão-de-obra barata. Trabalho que essas pessoas não aceitariam fazer nem tão-pouco nas mesmas condições". A segurança nacional como pretexto para o muro não o convence. "Os terroristas do 11 de Setembro estavam aqui legais." Mas acha que o novo muro vai avançar? "Duvido... Mas também muitos duvidavam que Donald Trump iria chegar a presidente dos EUA..."

Em Otay Mesa

A jornalista viajou a convite da FLAD

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