Os tempos de mudança segundo Moretti   

Com <em>O Sol do Futuro</em>, o realizador italiano revê a matéria do cinema regressando à "loucura" de outra era da sua filmografia, enquanto se perde (para se reencontrar) na paisagem da indústria moderna. Há aqui Fellini, sim, mas não necessariamente o mais óbvio.
Publicado a
Atualizado a

O que é que se passa com os jovens italianos hoje que pensam nunca ter existido "realmente" comunistas em Itália (achando que os que existiam vinham da Rússia)? E com a jovem que sugere ao pai escolher-se outro filme, que não o mesmo de sempre (Lola, de Jacques Demy), para alterar um ritual de sessão caseira familiar que só acontece de cinco em cinco anos? E com o jovem realizador que filma uma morte num filme de gangsters com violência padrão, sem considerar a ética do plano? Estas são algumas das perguntas "inquietantes" que adensam a nuvem em cima da cabeça de Giovanni, a personagem de Nanni Moretti em O Sol do Futuro, contribuindo para a imagem de um veterano rabugento que não está a conseguir lidar com os tempos de mudança. O que fazer? Para além de tentar a ajuda de Martin Scorsese, malgrado a chamada ir para o voicemail, só resignar-se em frente ao ecrã da televisão, agasalhado com a manta de retalhos que usara em Sonhos de Ouro (1981), antes de se levantar e ir para o quarto sozinho comer gelado.

Sim, a manta é um dos apontamentos humorísticos que não passará despercebido a quem tinha saudades do Moretti dos anos 70, 80 e 90, e de um certo rasgo do alter ego Michele Apicella. Mas a nova personagem, o tal Giovanni, realizador (claro), encontra-se numa situação que diz respeito especificamente ao presente. E, nesse sentido, Il Sol dell'Avvenire não é apenas um filme que procura satisfazer um desejo de regresso a um registo "leve" muito apreciado - ausente dos seus últimos melodramas -, mas que toma o pulso à realidade atual da produção de cinema, partindo daquele tipo de personalidade morettiana que encarna o espanto e a impotência ideais face ao jogo contemporâneo.

Há aqui, portanto, um filme dentro do filme, e mais alguns projetos que apenas habitam a mente do realizador. No essencial, Giovanni está a rodar um drama de época centrado no Partido Comunista Italiano, em 1956, e na forma como este reagiu - ou hesitou em reagir - à opressão soviética da revolta na Hungria, ao mesmo tempo que se instalava em Roma um circo húngaro, a convite do próprio partido. É um filme sobre um momento de crise da identidade comunista, bem entendido, que dividiu quem condenava a agressão da URSS e quem não ousava quebrar a lealdade. Da mesma maneira que O Sol do Futuro é um filme sobre a crise de um cineasta, que, perante as novas lógicas de produção, e perante um argumento que a certa altura começa a misturar-se com a vida (a política versus o amor, etc.), não sabe que posição tomar - até para poder ter o filme acabado.

Por causa da crise de identidade artística/existencial, da fantasia que ela envolve e do aspeto circense, a tentação de classificar O Sol do Futuro como o "Otto e Mezzo de Nanni Moretti" é muito grande. Porém, identificado o fantasma de Fellini, talvez a referência desse universo que mais se faz sentir nesta abundante autorreflexão fílmica seja A Voz da Lua (1990). Simplesmente por isto: nessa derradeira obra, o mestre italiano expressou, através da figura contrastante do lunático Roberto Benigni, toda a sua tristeza em relação a um mundo que tinha perdido a poesia, rendido que estava às aparências, à estupidez e ao pequeno ecrã dominado por Berlusconi...

Ora, também O Sol do Futuro parece erguer-se de um desencanto muito particular com o mundo moderno, já não se "culpando" a televisão mas as plataformas de streaming e as suas diretrizes - há uma cena anedótica em que Giovanni/Moretti vai a uma reunião com executivos para ver da possibilidade de o seu filme ser produzido pela Netflix, mas não está preparado para a linguagem formatada que encontra, onde uma breve citação sua de um filme dos irmãos Taviani surge como um ovni na sala. Aqui, ele é o lunático.

O que, na essência, difere O Sol do Futuro de A Voz da Lua é que Moretti termina com uma visão luminosa e coletiva, contrariando o pessimismo e a "noite" solitária que o filme de Fellini derrama sobre o espectador. E isso não é menos do que reconfortante num (auto)retrato atarefado que comporta inúmeras pequenas lições, piscadelas de olho, erupções musicais desopilantes e uma melancolia agitada que acaba por serenar. É bom ver como Moretti soube responder à crise - essa palavra abstrata - com uma brincadeira séria que recua ao espírito dos seus primeiros filmes, sem deixar de abraçar a índole melodramática dos últimos.

À boleia de O Sol do Futuro, a distribuidora Midas Filmes vai estrear também, em sala e no videoclube do Cinema Ideal, um título raro de Nanni Moretti, La Cosa (A Coisa, 1990), inédito comercialmente em Portugal. Trata-se de um pequeno documentário - melhor definido como documento antropológico - que regista as discussões e assembleias locais do Partido Comunista Italiano, numa altura (1989/1990) em que este questionava a própria "substância" do comunismo. Temos então uma paisagem humana, com uso extenso da palavra, que não poderia acompanhar melhor o enredo de época do filme-dentro-do-filme O Sol do Futuro, precisamente em torno das palavras que importava estampar no jornal L"Unità. Porque, como grita Apicella à jornalista em Palombella Rossa, "le parole sono importanti!"

dnot@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt