Os súbditos de Neptuno
Ribeira d’Ilhas, Ericeira, considerada por muitos a «água benta» do surf nacional. Fim de tarde. Tiago Pires chega para treinar e todos os olhos se viram para ele. O reconhecimento dos seus pares e dos amantes do surf em geral é notório e esta atenção não é mais do que uma forma de agradecimento ao surfista que durante anos batalhou por um sonho, o sonho de estar na elite do surf mundial, no World Championship Tour (WCT): no ano passado, Tiago Pires competiu lado a lado com o símbolo da modalidade, o norte-americano Kelly Slater. Ao recordar tudo o que passou, o português, que este ano está novamente entre os principais nomes da categoria, não teme afirmar que o pior defeito dos surfistas portugueses é não acreditarem que podem ir mais longe, que têm qualidade para isso, «é ter receio do atleta estrangeiro, entrar nas competições já derrotado. Depois, ficamos satisfeitos por sermos os melhores da nossa praia, colocamos o tecto muito baixo. Essa mentalidade não ajudou em nada o desenvolvimento do surf».
A situação está a mudar e o principal embaixador dessa mudança é precisamente Tiago Pires, que ressalva ser necessário, acima de tudo, «acreditar no nosso valor» e «trabalho, muito trabalho, pois só assim os resultados aparecem e, consequentemente, os patrocínios», indispensáveis para que se possa viver do surf. A popularidade de Tiago Pires é notória nos Surf Camps da TMN, o denominado «Saca Tour». As inscrições para esta iniciativa esgotam-se num ápice. Durante um fim-de-semana «Saca», como é conhecido no meio, transforma-se num deus para centenas de miúdos, que há muito trocaram a bola pela prancha, como admite Guilherme Bastos, o presidente da Federação Portuguesa de Surf, que comemorou recentemente duas décadas.
«Um estudo feito há quatro anos demonstrou um crescimento [de praticantes de surf] de dez por cento ao ano, especialmente entre os mais jovens. Números que comprovam o nosso próprio crescimento, já que também registámos nos últimos anos um crescimento significativo de atletas.» E é por isso que o dirigente, curiosamente praticante de bodyboard, decidiu avançar com uma medida que está a causar alguma celeuma no mundo do surf: a criação de sete centros de alto rendimento (CAR). A medida não é consensual e Tiago Pires é uma das vozes discordantes, pois defende que o dinheiro que será gasto nos CAR deveria ser entregue aos clubes, a base de tudo.
Guilherme Bastos defende a criação destas estruturas com unhas e dentes: «Os CAR surgem como mais um passo numa evolução que começou com a criação das selecções nacionais, de um corpo técnico qualificado, de atletas com passado competitivo excelente. Mas chegámos a uma altura em que não é possível deixar o processo evolutivo estagnar. Com os centros os surfistas vão poder evoluir. O objectivo não é ter só mais atletas, mas melhores atletas. Mas o enfoque não deve ser posto no CAR e sim na enorme linha de costa que temos. Os nossos verdadeiros Centros de Alto Rendimento não são as infra-estruturas que estamos a criar, mas as praias. Os centros vêm apenas colmatar uma falha que existe e que tem mais que ver com a parte técnico-desportiva. A todos aqueles que dizem que os sete CAR são demasiado, eu diria simplesmente que deveríamos ter mais. Não podemos esquecer que os campeonatos que temos são realizados em diversos tipos de mar, sendo isso o que explica a escolha dos locais. O surf só é rico enquanto houver essa diversidade.»
A verdade é que «a enorme linha de costa» que Portugal possui está a ser finalmente invadida por uma geração que procura um novo estilo de vida, mais próximo da natureza. Um dos pioneiros do surf no nosso país, Pedro Martins de Lima defende que «o surf influencia a maneira de estar na vida, em liberdade, em identificação com o mar, em contacto com a aventura. É um desporto em expansão, próprio para os jovens se encontrarem a si próprios. É um desporto violento, mas pacífico. A luta é com o mar, não contra as pessoas».
Proliferação de escolas
Um dos factores mais visíveis da expansão do surf nos últimos anos no nosso país é uma espécie de «multiplicação dos pães», mais concretamente, a multiplicação das escolas. Se há poucos anos era necessária quase uma investigação para encontrar uma escola onde aprender a surfar, hoje há praias com mais do que duas escolas. A Angels Surf School, em Carcavelos, foi uma das primeiras a surgir. Desde o início está ligada a um dos nomes mais emblemáticos do surf nacional, Marcos Anastácio, hoje responsável pelo projecto. O surfista confessa que nos primeiros anos «tudo era uma brincadeira» e o «lucro foi algum». Mas com os anos e a concorrência, o profissionalismo acabou por ditar as leis: «Depois fui pai e compreendi que acima de tudo o mais importante nestas escolas é a segurança dos alunos.» Anastácio alerta para a falta que faz no mercado nacional «uma entidade que regularize as escolas» e sublinha que «falta legislação para a criação das escolas». Ex-surfista, o hoje empresário diz que qualquer um pode abrir uma escola de surf desde que tire o curso da federação, que considera «bom»: «No entanto, isso não é suficiente. Infelizmente, as coisas só vão mudar quando acontecer algum acidente.»
Nas suas aulas há de tudo, estrangeiros, «principalmente durante a semana», e portugueses. Anastácio olha com especial orgulho as aulas com as crianças, «que já entram sem medo na água com apenas seis anos».
Sendo um dos surfistas que faz a ligação entre a geração passada e a presente, critica a nova geração, que, segundo o seu ponto de vista, «é uma geração mimada»: «Os nossos pais viveram na ditadura; nós, depois do 25 de Abril, não deixámos de passar por algumas dificuldades. Infelizmente, esse passado influenciou a nossa maneira de ver o mundo e procurámos dar aos nossos filhos o que não tivemos. Ou seja, eles não se esforçam para nada, não lutam, não têm objectivos, não acreditam neles próprios, não querem ir mais além. Simplesmente ficam contentes por serem reconhecidos na rua ou no máximo no seu bairro.»
Uma atitude que se reflecte no surf nacional, onde faltam candidatos para lutar com a elite mundial. «A nossa excepção é o Tiago Pires, um exemplo de vontade e talento», conclui.
O novo surf nacional
Mas essa geração pretende dar um grito de revolta e promete seguir os passos do seu ídolo, Tiago Pires. Um desses novos nomes é Vasco Ribeiro, de 14 anos, que vai competir no Estoril Quiksilver Pro devido a um wild card. Apesar da sua idade e de ser apontado pelos especialistas como um dos nomes a reter na modalidade, o jovem surfista tem consciência de que a sua realidade ainda não é o surf, «mas acabar o 12.º ano. Só depois vou tomar uma decisão sobre o futuro». O mar já faz parte da sua vida e o convidado da prova portuguesa não esconde que pretende «estar entre os grandes, fazer o máximo de provas do WQS», destacando que «apenas competindo com os melhores» poderá evoluir. Vasco Ribeiro considera que em Portugal «a rivalidade está a aumentar» e que «o ambiente é mais saudável». Lá fora, pelo contrário, «é um mundo-cão, é mais complicado. Mas é por isso que a evolução acontece de modo mais rápido». O pai, Raul Ribeiro, foi o principal influenciador do filho, já que também foi surfista. No entanto, destaca que a prioridade é a escola, «pois é ela que leva ao surf». O progenitor não esconde o orgulho no filho, que tem uma agenda preenchida para este ano, pois vai competir no Pro Junior e participar nas etapas portuguesas do WQS, «além de todas as viagens que já estão agendadas, quer com a Quicksilver como com a Surf Thecnik». Os destinos são, no mínimo, de sonho: Marrocos, Maldivas, Indonésia, Antilhas, Havai, África do Sul, França, Bangladesh…
António Pedro, responsável pela Alfarroba, uma das principais empresas do ramo no nosso país, organizadora durante anos do campeonato nacional e responsável pelas provas do WQS e WCT em solo luso, ouve com confiança e alegria o itinerário. Segundo o empresário, «o surf português chegou a uma fase que tem de dar o salto. Temos excelentes praticantes, potencial financeiro com novos intervenientes e patrocinadores, excelentes professores de surf». Mas se temos tudo isso, o que falta para alcançarmos o patamar das principais potências da modalidade? «Falta apenas os surfistas mostrarem disponibilidade para se sacrificarem, viajando pelo mundo para defrontarem outros melhores do que eles, aprendendo com eles e evoluindo.»
Quem viaja pelo mundo é Alexandre Grilo, um dos três sócios da Lapoint, uma empresa com sede na Noruega que traz anualmente ao nosso país, mais concretamente à Ericeira, centenas de estrangeiros. Mas também para Marrocos (Agadir), Brasil (Pipa), Bali, Maldivas (têm um barco), Bali (Kuta), Noruega (Statt) e França (Hossegor).
Nesses campos os clientes pagam uma semana de férias e vivem in loco o verdadeiro espírito do surf. Um espírito que poderá, contudo, ser maltratado devido à ganância. Grilo admite que a evolução empresarial da modalidade poderá estar em perigo porque «há pessoas a tentar fazer dinheiro e que só pensam no dia de hoje». O surfista defende que «não podemos deixar que as más empresas sejam vistas como exemplos (…) Por exemplo, em relação às escolas, aconselho que procurem uma escola profissional, dirigida por um surfista e não por um businessman. Procurem aulas de qualidade em que vejam que têm a atenção e segurança dos professores, sobretudo nas primeiras aulas».
Neptuno está à espera…