Os sete complexos para Jorge Jesus resolver no divã da Luz
com·ple·xo |cs|
adjectivo
(...)
9. [Informal] Perturbação psicológica ou comportamental que resulta geralmente de timidez ou de insegurança.
(...)
"complexo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
Cinco anos depois, o treinador Jorge Jesus regressa a um Benfica complexado desportiva e animicamente, em clima pré-eleitoral, com mais desconfiança dos adeptos do que quando foi contratado em 2009, regressando à Luz com mais seis títulos amealhados entre Sporting, Al-Hilal e Flamengo (em 16, 10 conquistou-os pelo Benfica entre 2009/10 e 2014/15). As águias, nesse entretanto, somaram oito. Mas após uma época em que só o início foi bom: conquista da Supertaça (5-0 ao Sporting), único troféu para amostra. A (re)apresentação do substituto de Bruno Lage é esta segunda-feira, às 17:00, no Seixal. Ao lado de Luís Filipe Vieira.
Aos 66 anos, Jorge Jesus parece menos impetuoso e belicoso do que quando, com 55 em 2009, subiu o último degrau da ambição no futebol português e entrou no Benfica. Para trás, ficou mais uma época ascendente, no caso ao serviço do Sp. Braga, onde conseguiu o primeiro quase-título. Na verdade, um troféu mais honorífico do que de competição. Extinta nesse ano de 2008, a Taça Intertoto da UEFA era já pelo terceiro ano uma prova atribuída à equipa que chegasse mais longe na Taça UEFA, sem confrontos diretos entre os contendores.
De 2009 a 2015, o reinado de Jorge Jesus foi marcado pelas tiradas impetuosas (como a famosa "nota artística") e pelos títulos (10 em seis épocas já não se via desde a década de 1980, mas nos últimos cinco anos entraram oito no Museu Cosme Damião...).
Mas também pelas provocações pouco recomendáveis a colegas e adversários (vide Manuel Machado, quando era treinador do Nacional: "Um vintém será sempre um vintém", devolveu o vimaranense ao Cruyff da Reboleira). E conflitos pouco edificantes com jogadores e dirigentes do Benfica (casos de Cardozo e Shéu).
E ainda por uma imagem eterna: ajoelhar de Jesus na catedral do rival FC Porto, quando Kelvin iniciou com um golo no Dragão a maldição do minuto 93 (em 2013, foi-se o campeonato para o FC Porto de Vítor Pereira, foi-se a Taça de Portugal para o V. Guimarães de Rui Vitória; e foi-se a Liga Europa para o Chelsea de Rafa Benítez).
O treinador nascido a 24 de julho de 1954, na Amadora, é aquele que tem mais jogos (325) e mais vitórias (229) na história do Benfica. E pode alguém voltar a um lugar onde já feliz (e triste)?
Pode. Hoje estará já no Seixal a ser apresentado e, espera-se, para dizer ao que vem em termos de construção do plantel, de relação com a SAD e o seu presidente, Luís Filipe Vieira, que vai a votos em Outubro, e do que ambiciona em termos competitivos, mentais e que livro de estilo vai seguir - "ganhar com nota artística" ou nota "ganhar ou ganhar"?
JJ pode trazer um exército de colaboradores para áreas fundamentais do treino (físico, tático, técnico, ofensivo, defensivo, de guarda-redes, análise e processamento de dados estatísticos e biométricos, departamento médico, etc.).
Mas e um psicólogo, ou um departamento de psicologia especializado no alto rendimento?
Enquanto se sucedem os dilúvios de anúncios de contratações-quase-concluídas (de Cavani a James Rodríguez; de Bruno Henrique a Cebolinha; de Koch a Léo Pereira, etc., etc., etc.), no divã da Luz há mais de 30 jogadores (plantel principal e jovens à porta para entrar) com problemas tão sérios que não chegará despejar um camião de dinheiro sobre o assunto. São os sete complexos para JJ resolver no divã da Luz.
Presidente desde 2003, Luís Filipe Vieira vai enfrentar três adversários nas eleições à presidência do Benfica (e por inerência, para a liderança da SAD), marcadas para 26 de outubro.
Enfrenta um antigo aliado, Rui Gomes da Silva, uma cara nova, João Noronha Lopes (com um percurso profissional de sucesso na McDonald's a dar credibilidade) e Bruno Costa Carvalho, que perdeu nas urnas em 2009 e garante que estará nos boletins de voto apesar de os estatutos terem sido alterados em 2010 (candidatos a presidente só com 25 anos de sócio depois da maioridade, Costa Carvalho é associado desde 2002).
As eleições vão ser tudo menos pacíficas. As farpas à falta de transparência na gestão, à catadupa de processos judiciais em que o Benfica se envolveu direta ou indiretamente, à mão fraca para dar o golpe de misericórdia num FC Porto intervencionado pela UEFA devido a problemas financeiros (e que ganhou dois dos últimos três campeonatos), notáveis de várias franjas a dispersarem-se.
"Com eleições daqui a poucos meses, sou o único benfiquista que se sente desapontado por não termos debates entre candidatos na BTV?", questionou no dia 26 de julho Bernardo Silva, ex-jogador do Benfica (saiu por 15 milhões na era Jesus) e jogador do Manchester City, mas adepto atento.
E porque é que isto tem de ser resolvido por Jorge Jesus? Por tudo, e por nada. Porque já está a ser questionado o seu vínculo (três anos) firmado a três meses do ato eleitoral; porque a sua contratação só faz sentido se Vieira despejar um saco gordo de dinheiro para mudar o plantel para o nível que o treinador quer. Porque se uma estrutura impenetrável cederia neste contexto de desunião, como ficarão (sobretudo) jogadores a precisar de deitar no divã?
Acima, referiu-se que a legião de colaboradores de Jorge Jesus é perita nas várias vertentes competitivas de uma equipa profissional de futebol. E, por norma, o terapeuta é o próprio JJ. Com métodos pouco ortodoxos, para alguém que dispara muito e pesado, obviamente. Se a década 2011/2020, que agora termina, foi claramente a melhor do Benfica desde os anos de 80/90 do século passado (cinco campeonatos contra cinco do rival FC Porto; mais duas Taça de Portugal - dobradinhas em 2014, com Jesus, e 2017, com Vitória), 4 Supertaça; 5 Taça da Liga; e 2 finais europeias - Liga Europa, perdidas em 2012, para o Sevilha nos penáltis, e 2013, para o Chelsea nos descontos), a força mental do grupo está em níveis mínimos. Os resultados dos últimos três meses são demonstrativos: cinco vitórias, três empates e duas derrotas deixaram a equipa a cinco pontos do FC Porto campeão da I Liga; a final da Taça, a jogar contra dez desde os 38"", foi um descalabro. Além dos fracos resultados, sentiu-se uma ansiedade quase palpável, de dúvida permanente nas capacidades próprias e coletivas.
As pernas tremem, as mãos suam, a barriga dói. Ansiedade ou pavor de haver um certo complexo de inferioridade perante o FC Porto, fruto de 16 anos (1994 a 2010) em que entraram três campeonatos na Luz (1994, 2005 e 2010) contra 11 do rival FC Porto, que a esse monte de ouro juntou platina internacional como 2 Liga Europa (2003 e 2001), Liga dos Campeões (2004) e Taça Intercontinental (2004).
Esse complexo parecia em vias de estar controlado, com o registo dos confrontos diretos com o FC Porto nas cinco temporadas à que acabou no domingo a ditar um 3-4-4 (vitórias-empates-derrotas). Mas eis que vem 2019/2020 e surgem três jogos entre os dominadores do futebol português. E três derrotas, duas na Liga (0-2 inapelável na Luz; 2-3 mais renhido no Dragão; e o 0-2 da final da Taça). O jogo de sábado em Coimbra demonstrou o ponto: com a expulsão de Luis Díaz aos 38"" (e a de Sérgio Conceição antes do intervalo), os portistas estavam de cabeça-quente e perderam o rumo que os estava a colocar muito perto de ganhar. O Benfica resistira a uma meia hora inicial fraca, foi para o intervalo a contar trunfos e começou a segunda parte a entregar o ouro ao bandido. Bola aérea, golo (até tu, Vlachodimos?), bola aérea, golo. Mbemba de u uma vantagem que ilustrava o que se jogava, mas sobretudo que demonstrava o medo emblemático na cabeça dos jogadores do Benfica.
Quando Jesus saiu em 2015, e foi para o Sporting abrindo um conflito que andou nos tribunais com pedidos de indemnizações milionárias de parte-a-parte, Vieira assumiu que Rui Vitória era o treinador de que o Benfica precisava para o famoso projeto internacional. Ou seja, o ataque às provas da UEFA, de cujas decisões andava arredado desde 1990 (última final da Taça/Liga dos Campeões em que esteve presente) e às quais só voltara com Jorge Jesus nas finais perdidas da Liga Europa, em 2012 e 2013.
O grau zero de incompetência europeia aconteceu em 2017/18, quando a equipa liderada por Rui Vitória fez a pior campanha da história do futebol português. Na fase de grupos da Liga dos Campeões, fez um golo e somou seis derrotas.
Dois camiões de dinheiro, um para a Liga e outro para a Europa, recompõe a mentalidade internacional do Benfica?
No Brasil, Jorge Jesus foi promovido a deus, bem à medida do complexo narcísico e de culto de personalidade própria do treinador natural da Amadora. Mas saiu chamuscado, depois de rejeitar o amor da maior torcida do mundo - é um pouco como "o caso dos seis milhões" - os dígitos variam consoante o emissor, mas a dimensão, em tempos de futebol-negócio, é difícil de contestar. Apesar de ter devolvido a glória com a Libertadores que fugia desde 1981. Mas ganhar a Libertadores não é a mesma coisa do que ganhar a Champions, como os próprios nomes indicam. Uma é sul-americana, outra é europeia. Lá há grandes clubes, deste lado do Atlântico, também. Mas aqui há clubes menos populares, mas mais ricos, devido às dinâmicas da indústria - veja-se os exemplos do Manchester City e do Paris Saint-Germain.
A questão é que se em 2009 a chegada à Luz foi apoteótica, agora a contratação de Jorge Jesus é olhada com desconfiança. Por causa dos conflitos após a saída e a ida para o Sporting, sim; mas, também, porque o futebol em 2020 não é o futebol de 2009/2010. Ou o de 2010/2011, quando o Benfica de Jesus foi dizimado pelo FC Porto de André Villas-Boas, bem longe desse ano fulgurante: em 58 jogos, apenas não ganhou nove - cinco empates e quatro derrotas. As 49 vitórias permitiram ganhar a Liga (concedendo apenas três empates), a Taça de Portugal (6-2 ao V. Guimarães) e a Liga Europa (1-0 ao Sp. Braga, que eliminara o Benfica de Jesus nas meias-finais).
Portanto, um clube/SAD em clima pré-eleitoral; uma equipa nas lonas mentais, adeptos desconfiados, troféus só em 2021 (Supertaça foi suspensa devido ao calendário encurtado pela pausa provocada pela pandemia). Jesus salva?
Depois de tudo o que já foi dito, convém acrescentar que ganhar com "nota artística" será cobrado permanentemente ao "mestre da tática". Porque a época que terminou no sábado foi muito fraca (não só para o Benfica, no caso da qualidade do futebol), porque Jesus apregoa que com ele as equipas dão espetáculo. Foi isso que começou por enfeitiçar os flamenguistas (os troféus fizeram o resto). Claro que se chegar ao final da época com uma dobradinha e uma carreira europeia com, pelo menos, quartos-de-final da Champions, uma nota 7 (0 a 10) terá reclamações, mas pouco ruidosas. Afinal, no futebol, como na vida, quem escreve a história são os vencedores.
Resumindo, Jorge Jesus precisa de um início de época à 2009/2010: empolgante, com vitórias demolidoras, mas, provavelmente, com um plantel necessariamente diferente. Desde que em 2013/2014 a influência de fundos de investimento em jogadores baixou drasticamente no futebol português, parece irreal pensar que o plantel do Benfica terá nomes como os de há 11 anos: Luisão, David Luiz, Fábio Coentrão, Javi Garcia, Ramires, Pablo Aimar, Di María, Saviola, Cardozo e Nuno Gomes. Cavani (33 anos) e James (29, mas desgastado por lesões e pelo carrossel de transferências) são nomes fortes, os outros terão de ser fortalecidos. Jesus terá de gerir magistralmente este binómio: exigência máxima / tempo mínimo. Com mais camião, menos camião de dinheiro.
OS TÍTULOS DE JORGE JESUS (16)
. 3 I LIGA
(Benfica: 2010; 2014; 2015)
. 1 Taça de Portugal (2014)
. 2 Supertaça
(Benfica, 1: 2014 | Sporting, 1: 2015)
. 6 Taça da Liga
(Benfica, 5: 2010, 2011, 2012, 2014, 2015 | Sporting, 1: 2018)
. 1 Supertaça saudita
(2019: Al-Hilal)
. 1 Brasileirão (Flamengo: 2019)
. 1 Taça dos Libertadores
(Flamengo, 2019)
. 1 Supertaça sul-americana
(Flamengo, 2020)
OS TÍTULOS DE JJ NO BENFICA (10 DE 16)
. 3 I LIGA (2010; 2014; 2015)
. 1 Taça de Portugal (2014)
> 1 DOBRADINHA: 2014
. 1 Supertaça (2014)
. 5 Taça da Liga (2010, 2011, 2012, 2014, 2015)
OS TÍTULOS DO BENFICA DEPOIS (E ANTES) DE JJ (8)
. 3 I LIGA (2016; 2017; 2019)
. 1 Taça de Portugal (2017)
> 1 DOBRADINHA: 2017, RUI VITÓRIA
. 3 Supertaça (2016, 2017, 2019)
. 1 Taça da Liga (2016)