Os senhores não perceberam

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Le Carré escreveu que uma secretária é um lugar perigoso donde observar o mundo. Assim é. E o confinamento aumentou consideravelmente o perigo da tarefa. Enfiados em casa, isolados de tudo menos da tragédia, a pandemia força-nos a uma contemplação que percorre os vários limites da sensibilidade humana.

Rimo-nos com as pessoas que alugam cães que permitam um passeio mais longo, com os transeuntes que andam de trela sem animal na rua e com todo o instintivo empreendedorismo que nos vai permitindo sobreviver ao desconhecido. Rimo-nos menos com a chico-espertice nacional em que se tornou a vacinação no país, com pasteleiros, filhas, noras e militantes a ultrapassarem idosos, médicos e enfermeiros à velocidade da falta de noção.

Indo aos números, em cerca de um mês de vacinação abriram-se nove investigações por suspeitas de abuso de poder, prevaricação e peculato. Um evidente sucesso da nação, mas do ponto de vista autobiográfico, não sanitário.

As "sobras" das vacinas são o novo exame da tropa durante a guerra colonial. Um favorzinho aqui, um amiguinho ali e um gajo safa-se do patriótico dever de estar morto. Antes, reivindicava-se objeção de consciência. Hoje, não se tem consciência de todo.

Rimo-nos ainda menos com isso tudo, com os casos quase literários, como a autarca que se confessa obesa mas em funções de improvável contágio, ou o morto de 92 anos que afinal estava vivo e que, por erro burocrático, foi chorado por uma família que não o havia perdido. No incessante milagre em que assenta o nosso Estado, podemos agora acrescentar a ressurreição à lista.

Do que não nos rimos tanto é do primeiro-ministro, que se passeou por exposições de arte em Bruxelas enquanto o número de mortos (covid e não covid) batia recordes em Portugal, ou do Sr. Presidente da República, que decidiu estrear o seu segundo mandato num programa de humor, em plena catástrofe.

Do que também não nos rimos, ou talvez só um pouco, é do governo de esquerda que proibiu escolas de darem aulas e livrarias de venderem livros. Um governo, recapitulando, que em cinco anos de apoio parlamentar comunista já recebeu o Santo Padre uma vez, se ofereceu para repetir a dose e estendeu nesta semana os braços a um general alemão, em pronto-socorro ao SNS.

Fora de humores, estou verdadeiramente convencido de que os senhores não perceberam. Não perceberam. Se tivessem percebido, um presidente de câmara não utilizava um lar para ser vacinado antes do tempo e uma militante partidária não usava um centro da Segurança Social para o mesmo. Se tivessem percebido, ou se se importassem remotamente, o poder político teria assumido as suas responsabilidades e condenado publicamente os dirigentes locais que se aproveitaram dos seus cargos para se vacinarem.

Digo que não perceberam porque, se tivessem percebido, não deixariam que esta cultura de impunidade fosse praticada perante um país inteiro. Porque, se tivessem percebido, não alimentariam tão descaradamente um eleitorado que está saturado de privilégios injustificados, de arbitrariedade na gestão de dinheiros públicos, de inimputáveis que se julgam donos do que não é seu.

Se tivessem realmente percebido, estes 15 dias depois das presidenciais teriam passado e os senhores teriam feito tudo para demonstrar aos 500 mil eleitores que preferiram o voto antissistema que entenderam o seu sinal, que respeitam as suas frustrações, que vão ouvir as suas ansiedades.

Mas parece-me que não perceberam nada.

Como na música de Sting, "as raposas já não correm, a besta está à espreita, fê-las correr em círculos, é o fim do dia".
E não é?

Colunista

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