Autor de Rashomon (1950), obra-prima que reúne versões contraditórias ou complementares de um mesmo evento, Akira Kurosawa realizou ainda outro símbolo do cinema, Os Sete Samurais (1954), cuja mensagem final é a de que todas as vitórias, mesmo as aparentemente mais gloriosas, são de Pirro, se causarem morte e sofrimento..Os Sete Samurais teve, entretanto, versões aplaudidas e relativamente fiéis ao seu conteúdo, como o western Os Sete Magníficos (1960). Mas a sua forma - o lado épico e guerreiro - tornou-se o marco zero de milhares de filmes de ação, quase todos estúpidos, entretanto criados..Filmes onde há heróis e vilões perfeitamente definidos, sem tonalidades nem complexidades, ao contrário da ideia original de Kurosawa. Se excluirmos os socos e pontapés, as (piores) telenovelas, ao criarem heroínas sem defeitos e vilãs sem pontas por onde lhes pegar, levaram esse reducionismo dramático ao extremo..Muita gente, no mundo em geral e no Brasil em particular, só consome essa ficção maniqueísta, dos bons e dos maus plenos, onde não faz parte da equação refletir, apenas sentir emoções básicas..Fora dos grandes centros do país, aliás, não é missão fácil encontrar nada nos cinemas além dos blockbusters de ação ou dos sucessos da Disney; e fora do horário nobre é quase impossível escapar das histórias em torno de uma mocinha angelical perseguida pela mais terrível das vilãs..Nesse contexto, a que podemos somar quem não leu nada além da Bíblia e ainda interpreta o texto religioso de forma literal, temos terreno fértil para o bolsonarismo, uma corrente que une o heroico ao moralista, frutificar. Jair Bolsonaro é o herói do filme de ação Brasil-2019; a sua ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, a moralista que quer resgatar os valores do Antigo Testamento para o século XXI..Ele defende o uso de armas para combater bandidos, ela acredita na cura gay - e não lhes venham com estudos e pesquisas que os confundam porque a vida é assim, e é mesmo assim, já diziam a Bíblia e o Jean-Claude Van Damme..Na vida real - a economia, a política -, o mundo sem tonalidades também tem a sua versão. Comunismo, socialismo e esquerda, que para o bolsonarismo é tudo a mesma coisa, significa ruína e miséria - veja-se o caso de Cuba e da Venezuela -, ao contrário do capitalismo vigoroso do paraíso terrestre Estados Unidos. E empresas do Estado são sinónimo de negligência e corrupção - basta olhar para a Petrobras - por contraste com a iniciativa privada, orientada para a eficiência e para o lucro..Ninguém olha para as nuances: que o vizinho Uruguai cresce há 15 anos ininterruptos, mesmo com governo de esquerda, e que a vizinha Argentina, com o falcão capitalista Mauricio Macri no comando, anda de pires estendido..E que os casos investigados pela Lava-Jato tiveram como protagonista não apenas a Petrobras mas também a privada Odebrecht (e mais umas quantas construtoras nas mãos da elite anticomunista, antissocialista e antiesquerda) e que as centenas de vítimas fatais de Brumadinho morreram ou desapareceram por culpa da negligência de uma empresa, a Vale, privatizada em 1998..Aviso importante: não se interprete do parágrafo anterior que todas as empresas privadas são negligentes e corruptas e que todos os países com governos de esquerda crescem mais. Não: mas há tonalidades e complexidades para lá das verdades absolutas..As verdades absolutas que Kurosawa tentou destruir em Rashomon e até em Os Sete Samurais, cujos heróis não eram perfeitos e nem sequer vencedores..Por falar em samurais, a partir deste ano, no estado do Rio de Janeiro, região em calamidade financeira onde o crime manda, o dia 24 de abril passa a ser o Dia do Samurai, por decisão de Wilson Witzel, um aliado de Bolsonaro que está mais para fã de Van Damme do que de Kurosawa.
Autor de Rashomon (1950), obra-prima que reúne versões contraditórias ou complementares de um mesmo evento, Akira Kurosawa realizou ainda outro símbolo do cinema, Os Sete Samurais (1954), cuja mensagem final é a de que todas as vitórias, mesmo as aparentemente mais gloriosas, são de Pirro, se causarem morte e sofrimento..Os Sete Samurais teve, entretanto, versões aplaudidas e relativamente fiéis ao seu conteúdo, como o western Os Sete Magníficos (1960). Mas a sua forma - o lado épico e guerreiro - tornou-se o marco zero de milhares de filmes de ação, quase todos estúpidos, entretanto criados..Filmes onde há heróis e vilões perfeitamente definidos, sem tonalidades nem complexidades, ao contrário da ideia original de Kurosawa. Se excluirmos os socos e pontapés, as (piores) telenovelas, ao criarem heroínas sem defeitos e vilãs sem pontas por onde lhes pegar, levaram esse reducionismo dramático ao extremo..Muita gente, no mundo em geral e no Brasil em particular, só consome essa ficção maniqueísta, dos bons e dos maus plenos, onde não faz parte da equação refletir, apenas sentir emoções básicas..Fora dos grandes centros do país, aliás, não é missão fácil encontrar nada nos cinemas além dos blockbusters de ação ou dos sucessos da Disney; e fora do horário nobre é quase impossível escapar das histórias em torno de uma mocinha angelical perseguida pela mais terrível das vilãs..Nesse contexto, a que podemos somar quem não leu nada além da Bíblia e ainda interpreta o texto religioso de forma literal, temos terreno fértil para o bolsonarismo, uma corrente que une o heroico ao moralista, frutificar. Jair Bolsonaro é o herói do filme de ação Brasil-2019; a sua ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, a moralista que quer resgatar os valores do Antigo Testamento para o século XXI..Ele defende o uso de armas para combater bandidos, ela acredita na cura gay - e não lhes venham com estudos e pesquisas que os confundam porque a vida é assim, e é mesmo assim, já diziam a Bíblia e o Jean-Claude Van Damme..Na vida real - a economia, a política -, o mundo sem tonalidades também tem a sua versão. Comunismo, socialismo e esquerda, que para o bolsonarismo é tudo a mesma coisa, significa ruína e miséria - veja-se o caso de Cuba e da Venezuela -, ao contrário do capitalismo vigoroso do paraíso terrestre Estados Unidos. E empresas do Estado são sinónimo de negligência e corrupção - basta olhar para a Petrobras - por contraste com a iniciativa privada, orientada para a eficiência e para o lucro..Ninguém olha para as nuances: que o vizinho Uruguai cresce há 15 anos ininterruptos, mesmo com governo de esquerda, e que a vizinha Argentina, com o falcão capitalista Mauricio Macri no comando, anda de pires estendido..E que os casos investigados pela Lava-Jato tiveram como protagonista não apenas a Petrobras mas também a privada Odebrecht (e mais umas quantas construtoras nas mãos da elite anticomunista, antissocialista e antiesquerda) e que as centenas de vítimas fatais de Brumadinho morreram ou desapareceram por culpa da negligência de uma empresa, a Vale, privatizada em 1998..Aviso importante: não se interprete do parágrafo anterior que todas as empresas privadas são negligentes e corruptas e que todos os países com governos de esquerda crescem mais. Não: mas há tonalidades e complexidades para lá das verdades absolutas..As verdades absolutas que Kurosawa tentou destruir em Rashomon e até em Os Sete Samurais, cujos heróis não eram perfeitos e nem sequer vencedores..Por falar em samurais, a partir deste ano, no estado do Rio de Janeiro, região em calamidade financeira onde o crime manda, o dia 24 de abril passa a ser o Dia do Samurai, por decisão de Wilson Witzel, um aliado de Bolsonaro que está mais para fã de Van Damme do que de Kurosawa.