Os remorsos do barão das Lajes preenchem 30 mil hectares de terra, perto de Penafiel

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Para lá do portão do século XVIII, cujas juntas se recusam a ranger, o cenário é perfeito. Na escuridão do caminho de terra batida, ladeado por vinhas, um ponto de luz move-se vagaroso na direcção da entrada, só a poucos metros deixando adivinhar o pequeno vulto, as rodas, a bicicleta. É um dos 20 netos de Marga- rida Rosa que vem buscar os forasteiros ao portão da Quinta de Santo António da Juncosa, 30 mil hectares em processo de ruína vagarosa há meio século, perto de Penafiel. Só a família da caseira vive aqui, entre paredes que já foram cortes de cavalos, longe da mansão senhorial habitada pelos remorsos do barão das Lajes, que há oito séculos deixou marca de assombração em cada socalco destes montes ao arrastar a esposa pela propriedade, presa a um cavalo, por infundado ciúme nascido da ausência em batalha.

O marido de Margarida Rosa, uma vida sem outros horizontes que os desta ruína vagarosa, nascido, criado e destinado a fazer nascer e criar família dentro dos muros da quinta, agiganta a sua sombra quando desce à casa senhorial. Não fala, vem calado e mais branco que o fantasma que terá visto um dia reflectido num espelho da mansão em ruínas, com "um chapéu branco, redondo". São as únicas palavras que há-de articular a custo, enquanto desfia um interminável fio de eletricidade com uma lâmpada, a tentar trazer alguma luz sobre o assunto, sobre a casa abandonada. "Era o baron", sussuram com pronúncia do Norte alguns dos 20 netos de Margarida Rosa, e as filhas da caseira mantêm uma das mãos no bolso, a fazer figas profanas, e benzem-se com a outra em afinco religioso. A história vai sendo desfiada ao mesmo ritmo que se vence a escuridão, as teias de aranha que parecem segurar as paredes da casa numa argamassa fina, silvas a invadir a sala principal a partir do tecto de abóbada.

"A herdeira de tudo isto vive no Porto, há muitas gerações que a família não habita a quinta e está tudo a desfazer-se há 50 anos", um pouco menos do que aqueles que definem a vida de Margarida Rosa. Assim abandonada, sem ordem para ser mantida, a mansão foi sendo pilhada ao mesmo ritmo que a lenda da assombração se foi espalhando pela aldeia. Azulejos do século XVIII, cadeiras, livros, muitos livros, tudo foi desaparecendo em visitas nocturnas dos vivos, com a cumplicidade dos mortos a manter os caseiros longe do lugar. "Ninguém vem aqui sozinho, foram tantas as vezes que ouvimos a mobília a ser arrastada, as pipas de vinho a rebentar na adega, o milho a ser ceifado... e no dia seguinte estava tudo na mesma." As filhas falam em luzes de procissão que se avistavam mais abaixo, sem romeiros nem andor. "Os nossos antepassados presenciaram muita coisa", gerações e gerações de jornaleiros e caseiros da Juncosa unidos pelos laços familiares e pelo sobrenatural, " e nós também". O fio de luz empunhado pelo marido de Margarida Rosa apaga-se, a família desata uns gritos de aflição, arrepiam-se as peles. Só o caseiro se mantém num silêncio esquálido enquanto enrosca a lâmpada, nem uma palavra, logo ele que foi o único a ver o baron.

É já depois de passar casas de banho com banheiras de quatro patas, a cama senhorial que mantém um ar nobre apesar das almofadas esventradas, o quarto que serve de dormitório a uma família de morcegos, o esqueleto do barco onde antes se passeava no lago, que os caseiros da Quinta da Juncosa mostram o seu tesouro. É o mapa que deu inteligibilidade a uma degradação que não entendem, a um passado que ninguém lhes explicou. O livro data de 1912, foi escrito aqui, na Âldêa de Rio de Moinhos sobre o Tâmega, e descreve o martírio da mulher do barão, amarrada ao cavalo e arrastada como numa caçada aos filhos do Islão. A acção da lenda situa-se no século XII, os remorsos assombram as vidas de hoje.

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