Os que realmente contam
Para uns, o aval de Pedro Passos Coelho às medidas ditas antidéfice do Governo é uma abdicação face à irresponsabilidade do PS. Para outros, é a atitude adequada a um homem preocupado com a estabilidade política e o interesse nacional. Para um terceiro e exótico grupo, o aval é uma estratégia que compromete o eng. Sócrates no futuro imediato e prepara com calma o regresso do PSD ao poder em época de relativa bonança, momento em que o novel líder revelará a sua natureza liberal e nos salvará.
Compreendo que seja fascinante analisar as combustões químicas que ocorrem no cérebro do dr. Passos Coelho, ciência que convoca uma razoável parte da população. Sucede que a parte restante desta, naturalmente menos sofisticada, está mais interessada nos gestos do que nas intenções dos senhores que, directa ou indirectamente, nos tutelam. E os gestos consagrados no grotesco pacote de paliativos apontam todos na mesma direcção: a despesa desce umas migalhas e a receita sobe talvez o suficiente para adiar a bancarrota. A "austeridade" recai, quase inteirinha, nos contribuintes, fora uns "cortes" que não cortam no essencial peso do Estado.
O eng. Sócrates "sempre esteve convencido" de que não aumentaria os impostos. "Com tudo o que aconteceu nos últimos dias", convenceu-se do contrário. Brilhante, não fora o facto de que o que aconteceu nos últimos dias ser uma peculiar forma de desvario iniciado, se quisermos ilibar Cavaco, no momento em que Guterres, o Magnânimo, resolveu abençoar a pátria. Há quinze anos que a pátria assiste impávida à subida dos gastos públicos a título de "investimento" ou benesses "sociais", tendência assaz aprimorada na gestão (digamos) do actual primeiro-ministro. Quando o delírio socialista ameaçou ruir, culpou-se o neoliberalismo (?). Quando o delírio ruiu de vez, culpa-se as agências de rating. Na retórica oficial, a culpa nunca é nossa.
No mundo real, porém, a culpa é nossa, que engolimos felizes as patranhas que nos atiraram e que, através do voto, teimámos em legitimar um quadro partidário unânime na crença das virtudes estatais. Claro que, com variáveis ajudas do PSD, o PS é o principal autor do fosso em que nos encontramos. Mas no CDS a defesa da iniciativa privada é intermitente e, escusado acrescentar, nos dois partidos comunistas é nula. A alternativa ao "mata" é o "esfola", e é lícito supor que a alternativa não existe visto que jamais a desejámos. O Estado sufocante, falido e relapso de que dispomos é aquele com que a maioria sonhou e que a minoria terá, igual e infelizmente, de pagar. Desculpem o cliché e a generalização: temos os políticos e a penúria que merecemos.
Perante isto, o pedido de desculpas do dr. Passos Coelho à nação serve unicamente para fins de anedotário, a que acresce a sua proposta de criar uma entidade pública para avaliar os "cortes" públicos. Desde que chegou a líder da oposição, o dr. Passos Coelho pôde optar entre exercê-la ou, como se constata, alimentar as mentiras do Governo. A primeira escolha seria digna. Qualquer das duas seria inconsequente. Especular sobre se o conluio com o Governo maculou ou garantiu a carreira do dr. Passos Coelho conta pouco porque o dr. Passos Coelho não conta nada. No poço a que descemos, até o eng. Sócrates deixou de contar. Só os portugueses contam: o dinheiro que falta, os dias para o fim do mês e, nas horas vagas, a história de um país que se julgou imune à sua trágica vocação para a asneira.
Terça-feira, 11 de Maio
Manuel Alegre só desertou da inteligibilidade
Os que lamentam o vazio dos políticos "modernos" deviam pôr os olhos em Manuel Alegre. Alegre, que, pelo menos a julgar pela idade, não é "moderno", também não é um monumento à profundidade. De cada vez que abre a boca, e Deus sabe que o faz frequentemente e que conta sempre com a minha atenção, o resultado é uma girândola colorida de lugares-comuns.
Alegre, diz o próprio, é um humanista. Alegre é livre e frontal. Alegre é suprapartidário. Alegre não é neutro. Alegre é homem de causas e combates. Alegre não tem medo. Alegre não se rende. Alegre não recebe lições de democracia. Alegre quer alargar a cidadania. Alegre quer uma esquerda nova. Alegre quer um novo patriotismo. Alegre quer um novo idealismo. Alegre quer novos sonhos, esperanças e descobertas. Alegre quer reposicionar Portugal no mundo. Alegre quer ouvir a rua. Alegre quer ser aliado e companheiro de viagem de todos os portugueses. Alegre quer mobilizar energias. Alegre quer os jovens a dançar a vida.
Alegre, agora sou eu a falar, construiu uma carreira à custa de parlapatices cujo significado é nulo mas que, em terra de cegos, ou iletrados, criam uma espécie de aura. Alegre é isso: uma aura com voz bonita, um pastiche de Hemingway erguido à custa de touros, caçadas e discutível talento, mais o fado para dar tom indígena.
Foi por isso com espanto que li uma proclamação do homem com princípio, meio, fim e conteúdo. Trata-se do seu percurso militar, descrito factual e cronologicamente no site pessoal para desmentir os rumores que circulavam na Internet de que Alegre teria sido desertor. O texto desce à minúcia, desde a incorporação em 1961 até à prisão em 1963, passando pela evacuação por doença ("zona", esclarece com notável síntese) e por Nabuangongos e Muximas. Não sendo uma peça de grande fulgor estilístico, é pelo menos compreensível. O que não se compreende é a razão de Alegre processar os caluniadores sob o pressuposto de que desertar de um exército que servia uma ditadura constitui uma vergonha.
Mas, com Alegre, compreender alguma coisa é melhor do que nada. Já o "dançar a vida" e restantes alívios poético-ideológicos são piores do que nada.
Sexta-feira, 14 de Maio
Do segredo e do profano
Para início de conversa, esclareço que a visita de Bento XVI não me entusiasmou nem deprimiu. Por felicidade, não tive de frequentar os lugares sequestrados pelas medidas de segurança. Por hábito, não vejo os canais nacionais, os quais, segundo ouvi, transformaram a visita numa epopeia sem fim e, muitas vezes, sem assunto. Por falta de fé, a visita passou-me ao lado.
Dito isto, não me passou ao lado a página no Facebook das associações de "activistas" que distribuíram preservativos nas cerimónias pontifícias: dado que a prevenção da Sida só funciona com arraial, anunciaram a proeza na Internet. Estranhamente, para gente tão libertária, a página possui regras: "Não serão tolerados comentários racistas, homofóbicos, etc."
Ao que li, o "etc." não se destina a insultos ao catolicismo, à hierarquia católica ou aos católicos em geral. Excepção feita a umas afirmações de incentivo aos "activistas" ("Força!", "Estamos convosco!" e assim), a página é uma compilação de ofensas à crença e aos crentes, incluindo graçolas de fino gosto sobre o Papa que come crianças em vez do inverso. Pelos vistos, ofensas dessas toleram-se sem problemas. E não apenas pelo "activismo" em busca de notoriedade.
Em Abril passado, circulou entre os diplomatas britânicos um memorando com sugestões do que o Papa deveria fazer de "útil" na próxima viagem ao Reino Unido: abrir uma clínica de abortos, abençoar um casamento gay e, claro, lançar uma linha de contraceptivos. Não se percebeu se o memorando era uma brincadeira. Percebe-se que, nos vigiados tempos que correm, há brincadeiras interditas e brincadeiras recomendadas. Como distingui-las?
Fácil. A orientação sexual, por exemplo, pertence à esfera do sagrado. A orientação religiosa não pertence, embora seja no mínimo tão influente na definição da famosa "identidade". Mas, antes que um incauto decida sair por aí a blasfemar contra Maomé, convém notar que a liberdade de galhofa se limita ao cristianismo e sobretudo ao catolicismo. Difamar o budismo não cai nada bem e, a julgar pela história recente, difamar o Islão aumenta as hipóteses de se cair pior. O segredo, aliás pouco secreto, é restringir o nojo àquilo que nos é próximo e, dentro da proximidade, ao que é maioritário. O segredo é respeitar o "outro" e, por curiosa exclusão de partes, desrespeitarmo-nos. O segredo é ser-se absurdo.
O bom caminho
As razões do PCP não serão as melhores, mas a verdade é que o FMI não é de fiar. O Fundo Monetário Internacional acha que Portugal e Espanha estão, cito, no bom caminho. A sério? Ambas as economias encontram-se à beira da falência. Os principais responsáveis pela situação mantêm-se no poder. As respostas à situação consistem em planos de austeridade desesperados e insuficientes. Aparentemente, o "bom caminho" conduz ao fecho por insolvência. Pior que isto, só se os governos dos dois países insistissem em brincar aos comboios de alta velocidade e, por requinte suicida, apresentassem uma candidatura conjunta ao Mundial de futebol de 2018. E não é que insistem e apresentaram?