"É irreconhecível! Há um fervilhar de gente que não havia", desabafa Maria do Rosário Pinho Bayer enquanto olha para os dois lados da rua, a Friedrichstrasse e a Zimmerstrasse. Jovens de mochila, uma guia de guarda-chuva na mão a ser seguida por um grupo de estrangeiros, máquinas fotográficas e telemóveis que não param de registar imagens de um local histórico, que já muito pouco tem que ver com o que era. Dois restaurantes de fast food, várias lojas de souvenirs, museus e cafés ajudam a encher aquele que é considerado um dos locais mais simbólicos da Guerra Fria..O Checkpoint Charlie foi cenário de vários filmes e séries, palco de tentativas de fuga de cidadãos da antiga Alemanha de Leste, ponto de confronto entre tanques soviéticos e americanos, a mais famosa passagem entre os lados oriental e ocidental. A barreira, o posto de controlo, e os sacos de areia são uma réplica do que existia na altura e servem de pano de fundo às poses dos atores fardados de militares. Uma excursão de Trabants coloridos, os carros usados na República Democrática Alemã (RDA), fazem virar a cabeça da advogada portuguesa que chegou a Berlim dois anos antes da queda do muro.."Foi um clima de festa muito arrepiante. Muito giro. Comoveu-me muito ver esse momento, as pessoas e a alegria, essa irmandade que se criou. E o bater nos carros, toda a gente batia nos Trabis. Tínhamos medo que eles não aguentassem porque eram carros muito fracos. E as pessoas lá dentro muito assustadas, porque vinham para ver Berlim ocidental e não esperavam tanta gente a fazer a festa", lembra, com um sorriso..Nessa quinta-feira, ao final da tarde, Maria do Rosário estava em casa, sozinha, a ver as notícias. "E a não acreditar, como toda a gente. Não parecia possível."."Um amigo meu, assessor do presidente da Câmara de Berlim ocidental, ligou-me e disse-me: Fernando, o muro vai cair", mas Fernando de Almeida também não quis crer na novidade que não parecia possível. Quando saiu de casa já a conferência de imprensa com Günter Schabowski sobre a nova lei da mobilidade tinha terminado. Questionado por um jornalista italiano, já perto das 07.00 da tarde, o antigo porta-voz da RDA confirmava, pouco convicto, que as fronteiras se abririam imediatamente.."Muito antes de chegarmos ao Checkpoint Charlie já era um rodopio de carros. Eu estava lá quando os primeiros Trabis começaram a sair e as pessoas da RDA foram saudadas com champanhe", recorda o intérprete e tradutor para entidades oficiais e organizações internacionais.."Sabia-se que os soviéticos já não estavam com tempo, nem com condições financeiras para apoiar a RDA. Senti que alguma coisa ia acontecer no bloco comunista, mas uma abertura do muro de um dia para o outro não imaginava, sinceramente", confessa Pedro Jacinto, ao lado de um pequeno troço de muro no centro da Potsdamer Platz, na altura terra de ninguém.."Estava com um amigo alemão a jantar, sempre com o rádio ligado. Começámos a ouvir que as pessoas estavam a passar e depois ligámos também a televisão. Já se viam imagens da Bornholmer Strasse porque foi o primeiro posto de controlo a ser aberto", adianta o pequeno empresário, a trabalhar na área do turismo..O local chama-se agora praça 9 de novembro. Há um conjunto de painéis com as imagens e a história do que ali aconteceu. Começaram por ser uns poucos, mas o número foi crescendo. Primeiro passavam a medo, mostrando o passaporte, depois chegaram também os carros, as buzinadelas, os gritos e o champanhe. "Nós voltamos!", repetiam. Mas isso já pouco importava, o muro abria-se.."A parte de leste era bastante mais pobre, tudo muito escuro, dado ao desprezo. Tudo muito barato porque as pessoas não ganhavam muito dinheiro. Com 20 marcos podíamos comer e beber e deixar lá o dinheiro porque não sabíamos o que fazer com ele", diz o músico e cozinheiro António Brito, sentado num dos bancos de pedra, mesmo em frente à ponte onde as primeiras pessoas celebraram o fim de um muro de 28 anos.."Houve uma altura que ia lá quase todos os fins de semana. Era muito barato. Jantávamos, íamos para um hotel, para uma discoteca, as raparigas jovens gostavam de martíni e então comprávamos uma garrafa que, para nós, não custava quase nada", partilha Manuel Soeiro..Namoradas do outro lado não tinha, mas algumas amigas a quem levava meias de vidro enroladas à barriga para que os guardas de fronteira não descobrissem.."Era um controlo muito rigoroso, a polícia não era simpática, e, por vezes, muito agressiva", descreve, partilhando uma viagem que fez a Portugal com um amigo, onde confundiram a cidade de Frankfurt, no sul da Alemanha, com Frankfurt an der Oder, outra localidade com nome parecido, mas no lado oriental.."Entrámos noutra autoestrada, andámos uns 50 quilómetros e aparece a polícia. Fomos dados quase como terroristas. Mostrámos os documentos, explicámos o problema e levaram-nos novamente até à fronteira. Desfizeram o carro todo, destruíram a minha máquina fotográfica, abriram as malas, tiraram o ar do pneu suplente e deixaram tudo no chão. Era demais", relata. Chegou a ver pessoas que tentavam fugir a serem agredidas.."Ponha-se direita. Puxe o cabelo para trás. Da outra orelha. Não se ria." Maria de Lurdes Laranjeira, com 81 anos, imita as posições e as expressões dos polícias da antiga RDA.."Lembro-me de subir a umas escadinhas de madeira do lado de cá, os cães presos por uma corrente e os polícias armados (...) Não fazia sentido nenhum. Não se podia levar nada, não se podia comprar nada. Tudo muito velho, muito caído. Tudo muito triste", recorda a antiga coordenadora do rancho folclórico português em Berlim.."Deste lado era silêncio, do outro lado era ruído", descreve Fernando de Almeida, "não se ouvia nada porque, como sabe, em qualquer metrópole há música que sai dos cafés, pessoas a falar alto. No lado oriental, como não havia nada, só o silêncio fazia eco para a rua.".Não muito longe das Portas de Brandeburgo, aponta para o local da antiga Embaixada de Portugal na RDA, onde trabalhou durante vários anos "mesmo coladinho ao muro". Estacionava o carro no lado oriental, e passava para o outro lado através do Checkpoint Charlie.."Um mundo muito americanizado, da parte ocidental, e um mundo muito cinzento, na parte oriental, praticamente um padrão do sistema que se vivia nos países socialistas", lembra.."Havia uma absoluta falta de som, tudo muito sossegado, pouco movimento de carros e pessoas", recua Maria do Rosário Pinho Bayer, que apura outros sentidos, "quem se aproximasse do muro, sentia um cheiro no ar que nem consigo descrever. Talvez fosse dos motores e do combustível dos carros. No interior da Alemanha oriental sentia-o muito, mesmo depois da queda do muro".."Lembro-me da primeira vez que fui. A pé. Era tudo mais cinzento, mais triste, o comércio era muito pobre, havia muito pouca iluminação. Eram realmente dois mundos (...) Trocávamos os 20 marcos obrigatórios para gastar durante o dia, tínhamos de voltar antes da meia-noite. O visto custava 5 marcos. Para gastar essa quantia não era fácil, almoçar num hotel, por exemplo, custava uns 4 marcos", descreve Pedro Jacinto..Dois mundos que, para muitos, ainda existem.."Sinto que ainda há. Penso que ainda têm de passar uma ou duas gerações para isso passar porque as vivências, traumas e preconceitos ainda são passados aos filhos. Olhando para os resultados das eleições, vê-se que ainda há um fosso entre a parte oriental e a ocidental", explica Maria do Rosário, sublinhando a força crescente dos movimentos e partidos de extrema-direita, principalmente nas regiões da antiga RDA.."É muito fácil perceber quem é ocidental e oriental, por exemplo, através do dialeto berlinense. Há coisas enraizadas na mentalidade e no vocabulário e que fazem que haja diferença. E o fato de não se sentirem aceites e de se considerarem cidadãos de segunda classe, faz que votem na Alternativa para a Alemanha (AfD)", admite Fernando.."Há quem diga que é uma questão que vai durar duas ou três gerações. Claro que está mais próxima a geração nascida e criada depois de 1989, a integração é cada vez maior e a aproximação também", acrescenta.."Ainda há aquele preconceito do Wessie e do Ossie, em que os do ocidente se acham especiais, e os de leste acham que não são tão maus como a fama os pinta. A nova geração não tem nada que ver com a RDA, nota-se na educação dos pais que ainda há reminiscências, mas não é nada de especial", defende António.."Foram alagados com um exagero de democracia a que não estavam habituados. Recebem pouco dinheiro e acham incrível que venha alguém de fora e receba o mesmo", conclui..Também para Manuel Soeiro continuam a existir muitas diferenças. "Talvez lembrar a queda do muro ajude a pensar" que o de cá e o de lá são agora o mesmo lado.