Os políticos no palco da pandemia

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Numa crise de saúde pública, o que nos deve ser dito e por quem? O serviço de informações epidemiológicas do Centro para o Controlo de Doenças dos EUA dedica um capítulo do seu manual de epidemiologia à comunicação. Nele salienta a importância de manter a confiança e a credibilidade e recomenda aos comunicadores escolhidos que produzam as suas mensagens com empatia e cuidado, honestidade e abertura, dedicação e empenhamento, competência e conhecimento. Assim como sublinha a importância de que se definam claramente os papeis e as responsabilidades de cada entidade.

A revista The New Yorker publicou em maio deste ano um artigo sobre este serviço e a comunicação na pandemia em que um antigo dirigente do Centro para o Controlo de Doenças afirmou que o porta-voz do combate a situações de epidemia deveria ser um cientista, uma vez que, se tivermos "um político no palco, há risco real de que metade da nação faça o oposto do que ele diz".

O modo como nos comunicam uma situação grave de saúde pública e as medidas que justifica não é uma questão técnica ou fútil. Grande parte do que nos vai acontecer será determinado pela nossa capacidade e vontade de cumprir as prescrições que recebemos.

É conhecida a fadiga da prevenção. Se numa primeira fase, assustados, estamos prontos a cumprir com zelo todas as instruções, rapidamente nos habituamos a viver com o perigo e a negligenciar os riscos reais que corremos. Há quem fale mesmo da ocorrência na história de um fim social das epidemias anterior ao seu fim clínico, quando elas ainda nos ameaçam mas são como que normalizadas num processo em que o medo dos seus efeitos deixa de reinar sobre os quotidianos.

É conhecido também o risco de desorientação e perda de credibilidade se durante uma mesma epidemia se transmitem mensagens contraditórias. O manual que refiro acima sublinha a importância de comunicar sempre o que se sabe e o que não se sabe e de dar a conhecer à população informação específica de que se disponha e horizontes temporais que se conheçam.

Observando em retrospetiva o que em Portugal se fez no último semestre há uma razoável concordância com as cautelas e prescrições do serviço de informações epidemiológicas americano. Geralmente têm sido as autoridades de saúde a dominar a comunicação e a transmitir as ideias-chave do combate à doença. Numa primeira fase os políticos tinham o cuidado de intervir legitimados pela evidência e após mostrarem ter participado em briefings de cientistas que os informavam do progresso da epidemia. Houve a preocupação de buscar consensos, mesmo quando foram tomadas medidas como o estado de emergência, porventura exagerado e desnecessário. Mas algo está a mudar.

No plano simbólico, o pior exemplo dessa mudança foi a extemporânea e ilusória produção de uma sensação de vitória sobre o que era público e notório que seria apenas a primeira vaga da pandemia, num ciclo em que se sabia que a segunda seria em qualquer cenário intensa e nem sequer seria a última.

Agora que a pandemia está de regresso e com mais força que antes aos nossos quotidianos seria o momento de regressar à boa gestão da pandemia e às boas regras de comunicação do combate que lhe movemos.

O artigo da New Yorker referido no início deste texto contrasta a sobriedade de Obama e a margem que deu aos cientistas na gestão do H1N1 com o espalhafato trumpesco.

Parece óbvio que as boas práticas recomendam que devolvamos a quem lida com a evidência o protagonismo na indicação de caminhos a seguir. Mas entrámos no caminho oposto. Marcelo Rebelo de Sousa, atropelando a prudência, antecipou-se a tudo e todos para aparecer primeiro em palco a falar no início de outubro sobre o que acha que podemos ter que fazer no Natal. António Costa comunica o conjunto de medidas que o governo anunciou colocando-se no papel do homem providencial que sentiu que era preciso haver um abanão na sociedade, sem esperar - contradizendo mesmo - a voz dos cientistas para desenhar um conjunto de em medidas em que instala a controvérsia política em torno de medidas autoritárias logo denunciadas como não sendo baseadas na evidência.

Se há coisa que uma pandemia dispensa é homens providenciais, gestos desgarrados e proclamações de autoridade. Ou tentativas de aproveitamento político conjuntural para outros fins da nossa emergência de saúde pública. Claro que precisamos de estabilidade e o orçamento aprovado, mas não se devem cruzar linhas que a democracia e a saúde pública exigem que se mantenham separadas.

A democracia em tempos de pandemia precisa muito do bom-senso e prudência de Obama e nada do espalhafato de Trump. Precisa muito de cautela e saúde pública, nada de manipulação.

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