"Os politécnicos devem passar a chamar-se universidades"

Rui Pedrosa está a terminar o primeiro mandato à frente do Instituto Politécnico de Leiria. Nos últimos dias trava uma luta com o Governo a propósito do financiamento da instituição, que se tornou numa manta de retalhos. Sobram-lhe, porém, orgulhos vários: uma taxa de empregabilidade que atinge os 96%, o maior número de sempre de alunos matriculados, no ano em que inaugura um protocolo com Cabo Delgado para receber estudantes da província moçambicana. Acredita que o exemplo pode ser replicado em todo o país.
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Nos últimos tempos tem aproveitado todas as ocasiões para denunciar a falta de financiamento por parte do Estado. Como é que o Politécnico de Leiria pensa dar a volta a esse drama que vos está a assolar?
De facto o financiamento é um problema. Felizmente nós temos conseguido aumentar muito as receitas próprias, e só assim temos tido algum equilíbrio no nosso Orçamento e nas nossas contas. Mas vivemos tempos muito difíceis. Por um lado, não existe uma fórmula de financiamento a nível nacional que reconheça o mérito e as conquistas das instituições, e que as vem financiando pelo histórico do Orçamento e traduz-se em desigualdades e injustiças tremendas.

Por exemplo?
Há hoje instituições com o tamanho do Politécnico de Leiria e que têm do OE mais 10 milhões de euros que nós. Tivemos nestes últimos dois anos um aumento das despesas (associadas ao contexto pandémico) e uma redução brutal de receitas nos serviços de ação social, temos serviços próprios, o que quer dizer que a estrutura de custos associada se mantém, por isso tivesse que fazer já transferências na ordem dos 500 mil euros. E não tivemos qualquer reforço para compensar estes desequilíbrios que temos. No ano passado fomos obrigados a transitar para 2021 um milhão de euros de compromisso da caixa geral de aposentações. E este ano - porque continuamos sem qualquer reforço para equilibrar as contas - vamos ter um problema gigante neste final do ano, que agrava uma situação: temos cerca de um milhão de euros de financiamento alocado para os curso técnicos profissionais, que não foi financiado pela região centro , e tem que ser pela Direção Geral do Ensino Superior.

E tem feito chegar essa reclamação à tutela?
Claro. Reportamos todos os meses a situação e não temos qualquer resposta até à presente data. Eu acho que o Governo tem todas as condições para o fazer. Estamos a falar do OE de 2021. Até porque este milhão de euros de que falava, já nos equilibrava as contas deste ano e é um dinheiro nosso. Aí não estamos a falar de qualquer reforço. Estamos a falar do pagamento de uma despesa que o Politécnico já teve.

Porém diz-me que apesar de tudo tem conseguido aumentar as receitas. De que forma?
Temos cada vez mais projetos financiados. Temos hoje quase 170 projetos em curso, lideramos uma universidade europeia (só duas instituições de ensino superior em Portugal é que o fazem), um financiamento que também ajudou a equilibrar as nossas contas no ano passado, que é de cinco milhões de euros, e que sendo a três anos, já nos anteciparam. Aliás, também aqui, nos outros estados membros, as outras universidades que participam, tiveram um reforço de verbas dos países em que estão. E nós não tivemos. Nem compensação nem apoio.

Apesar de tudo, consegue chegar a este ano com o maior número de alunos de sempre, perto de 14 mil. Como é que foi possível?
Temos matriculados 13.800, mas contando com os que vamos receber de mobilidade no segundo semestre, vamos claramente ultrapassar os 14 mil.

Como é que isso se faz? Investimento em comunicação?
Faz-se sobretudo com qualidade, com um enorme investimento das nossas escolas, esforço coletivo dos professores, investigadores, corpo técnico, com estas conquistas, como a da universidade europeia. Hoje na Europa olham para nós como referência. Cada vez mais estudantes de Erasmus querem vir conhecer o Politécnico de Leiria. Temos cada vez mais estudantes internacionais a fazerem ciclos completos de estudos (são cerca de 1000), temos estudantes de 70 nacionalidades diferentes. As propinas dos estudantes internacionais já ultrapassam anualmente os dois milhões de euros. São muito importantes para as nossas contas. Cada vez temos mais prestações de serviço ao tecido económico e social, e temos aumentado as nossas receitas próprias aí. Por isso, julgo que a nossa parte temos feito bem. No nosso orçamento global, apenas 45% é OE. O resto é receitas próprias. Portanto, esta questão do financiamento tem de ser revista. Pelo menos os TESP têm de ser financiados via OE, porque é assim que são financiados em regiões de não convergência, como é o caso de Lisboa. Com impostos de pessoas desta região...

O Politécnico de Leiria fez muito caminho à conta das engenharias, chegando hoje a uma empregabilidade que atinge os 95%. Existe a ideia de que essa área tem vindo a perder terreno. Confirma isso?
O Politécnico de Leiria tem cinco escolas, e a empregabilidade próximo de 96% é transversal a todas elas e não é algo das engenharias. A nossa formação nessa área é forte, robusta, continua a ser, próxima do tecido empresarial, mas acontece o mesmo na formação de professores, no desporto, nas organizações sociais, na gestão, nas artes e no design, na ciência e tecnologia do mar. Felizmente este território tem uma diversidade gigante de setores económicos, empresariais, sociais, culturais, que nos ajuda também de forma transversal, em que os nossos estudantes encontram - em 22 municípios mais um e duas comunidades intermunicipais uma empregabilidade nas mais diferentes áreas. Eu diria que o Politécnico de Leiria é conhecido hoje por estas áreas todas e não apenas pelas engenharias. A dimensão tecnologia e das tecnologias da informação já tem igual peso. Ou outros que são bandeiras, como o de tradução e interpretação de português-chinês, que é único no mundo.

Nessa ligação com a China o Politécnico foi pioneiro ao nível das relações académicas. Ainda hoje se mantêm?
Temos uma relação forte, sim. Por exemplo com o Politécnico de Macau, com a Universidade de Língua e Cultura em Pequim, mas também com várias outras universidades de províncias diferentes da China que têm formação superior de língua portuguesa aplicada.

Entretanto há poucos dias noticiámos um protocolo entre o Politécnico de Leiria e Cabo Delgado. Vão receber alunos oriundos dessa província de Moçambique. O que é que vai envolver esse intercâmbio?
Os estudantes estão neste momento a preparar a vinda. Em julho recebemos a diretora do instituto de bolsas de estudo de Moçambique a transmitir que tinham muitos estudantes que pretendiam vir para cursos Técnicos Superiores Profissionais - em áreas estratégicas para o Governo de Moçambique, num programa, com apoio financeiro do Banco Mundial, com o apoio da nossa Embaixada de Portugal. Não só dar horizonte de sonho a estes estudantes, retirá-los daquele contexto dramático. Dar-lhes formação, para que possam regressar e ajudar a terra a reconstruir aquela zona norte. E nós mostrámo-nos disponíveis para o fazer.

E que áreas são essas?
São várias, desde a intervenção social, recursos minerais, tecnologia, turismo, design, há várias áreas envolvidas. O fator crítico aqui era encontrar alojamento, e por isso foi preciso o apoio dos municípios. Temos um acordo com o município de Leiria que foi decisivo, mas também com o de Caldas da Rainha e Peniche, para conseguirmos ter cá 30 estudantes. Em princípio vamos receber mais 20, e para isso contaremos com o apoio do município de Pombal e de Torres Vedras, onde temos núcleos de formação. Vai ser um desafio grande. Estes estudantes vão ter alojamento, alimentação nas nossas cantinas, e vão ter uma bolsa para a subsistência ao longo destes dois que podem ser três anos que vão passar connosco. Penso que vai ser transformador. Porque se este exercício correr bem, vamos abrir portas para muitos outros estudantes daquela província possam vir para outras instituições em Portugal. Vamos acompanhá-los muito de perto e integrá-los bem. Hoje a missão do Politécnico de Leiria tem explicitamente a palavra multicultural.

Tem tido sempre essa bandeira da integração, nomeadamente com os alunos com dificuldades. Estou a lembrar-me do CRID - Centro de Recursos para a Inclusão Digital. Qual é a maior preocupação a esse nível?
A integração é fundamental. Temos muita preocupação e foco com a integração dos nossos estudantes, cujos momentos são fundamentais para prevenir abandono e promover a curto e médio prazo o sucesso académico. E pensarmos nas diferentes vertentes. A integração é também pensar na forma inclusiva, por exemplo no que respeita aos estudantes com necessidades educativas específicas. E nesse campo o CRID é um centro de referência. Temos um projeto único no país que é o 100% IN para a integração dos estudantes com necessidades educativas específicas. Candidatámo-nos a um programa nacional de financiamento para melhoria das acessibilidades, e é mais uma área em que não há qualquer financiamento via OE para este tipo de atividades no campo inclusivo.

Qual é a percentagem de estudantes com necessidades especiais?
À volta de 6%. Reconhecem-nos isso, esse empenho. Na região centro temos à volta de 30%. Mas para conseguir esse programa 100% tivemos que ir à luta. Apresentámos uma candidatura ao programa Portugal Inovação Social. Integramos também muito através da Cultura, das Artes, com exposições em todas as nossas escolas, concertos, performances de dança, um investimento muito grande nessa área, aberta a toda a região.

Dentro da academia há quem considera a praxe uma forma de integração. Qual é a sua opinião, nomeadamente sobre o que se passa nas escolas do Politécnico de Leiria?
A praxe é também uma forma de integração, sim. Os nossos estudantes e as associações são muito responsáveis na praxe e na forma como integram. Eu enquanto estudante em Coimbra tive experiências incríveis. Fiz amigos para a vida. Não tenho nenhum preconceito em relação à praxe, desde que seja integradora, com valores, com princípios , livre, com a liberdade do estudante dizer que não, se não quiser. E que sejam atividades que tenham na sua essência dignidade. E eu diria que de forma transversal, há sempre uma outra exceção, podemos-lhe chamar praxe ou outra coisa qualquer. Vamos ter sempre alguns problemas, porque somos uma comunidade muito grande, e não é por ter praxe, é porque somos uma comunidade de 14 mil estudantes. Acho que algumas até são solidárias. Por exemplo, estes ano, na escolas de artes, os estudantes estiveram a vender jornais e a receita foi para uma instituição de responsabilidade social. A praxe também é isso. Por isso, abominar a praxe não é um bom caminho.

Faz sentido alimentar a ideia de ver o Politécnico transformar-se em universidade pública?
Eu gostava sobretudo de esvaziar algo que às vezes é um mito: nós somos uma instituição de ensino superior em pleno. Fazemos o nosso papel e cumprimo-lo muito bem, no ensino, na investigação ao serviço da sociedade, da internacionalização, temos um doutoramento em associação com a Universidade do Minho, lideramos uma universidade europeia. Nós não queremos transformar o Politécnico de Leiria em nada. Todos os dias queremos fazer melhor. Mas há uma coisa que é importante: podermos ter doutoramentos. E para isso é preciso alterar a lei. E depois é outra coisa - na designação, termos lá a palavra universidade. Defendo um sistema binário, em que os politécnicos passem a designar-se como universidades politécnicas, para que a perceção nacional e internacional do que fazemos seja imediata.

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