Os pés ao caminho

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Quando os átrios dos aeroportos eram grandes rossios de gente acenando a viajantes, passei horas observando como estes caminhavam ao encontro de um abraço ou passavam de olhar alheado, lembrando aventureiros chegados de desenterrar tesouros em Nínive ou de descobrir cidades perdidas. Há tipos que, de tanto voarem sentados, parecem caminhar como se o chão tivesse pedais. Outros deslizam como se desenhassem uma coreografia ou adivinhassem rios subterrâneos. Alguns arrastam os pés empurrando a sua casa de rodas, um olhar de Sísifos asténicos.

Passei horas nesse trabalho de campo, entretendo esperas mais longas. Isso não me autoriza a decretar que somos o modo como caminhamos, mas para lá caminha. Invoco, em meu socorro, a tese de Erling Kagge, o primeiro a atingir, sozinho, o polo sul. No livro A Arte de Caminhar, ele sustenta que "a maneira como uma pessoa caminha pode dizer-nos mais sobre ela do que o seu rosto".

Há dias, procurando informação sobre o busto do músico Luís Morais, agora instalado num lugar perto do coreto da Praça Nova, no Mindelo, encontrei uma antiga entrevista do escultor Domingos Luísa, autor da obra, à revista Nós Genti. Nela partilhava as andanças que o trouxeram à Expo'98, como cenógrafo dos Simentera. Foi quando a Câmara de Oeiras lhe encomendou a estátua do Trabalhador Africano instalada em Carnaxide. Na entrevista, ele conta que, aos 7 anos, foi levado para a Guiné-Bissau, de onde regressou ao seu país, já com 21. E isso lhe permitiu perceber que o andar dos cabo-verdianos "era mais solto, com passos mais longos, devido às rochas onde se movimentavam". Já os guineenses "andavam com os pés mais rentes ao chão e menos hirtos", pois "lá a terra é plana".

Terá ele levado isso em conta quando esculpiu os pés da Diva Descalça, sua obra maior, colocada à entrada do aeroporto de São Vicente? É que a embaixadora da morna fez-nos subir ao monte Cara deslizando na planura do palco.

Quando passar o nevoeiro, procurarei lugares mais longínquos onde as pessoas, de novo, caminhem. Não em passeio higiénico, mas entre o apeadeiro e a fábrica, ao longo dos vinhedos, no coruto dos povoados. Vou conversar, caminhando, com o grande andarilho Duarte Belo, ou com um agrimensor, ou com um guarda-rios. Quero meter pés à conversa, tomando à letra as palavras do Papa. Quero, a meu modo, "gastar as solas dos sapatos".

Jornalista. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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