Para mim, como espectador, trata-se de regressar a Abel Ferrara. Antes do mais, ao desconcertante e fascinante filme recentemente estreado entre nós, 4.44 Último Dia na Terra, uma espécie de melodrama apocalíptico em que um par à deriva, Cisco e Skye (Willem Dafoe e Shanyn Leigh), vive a destruição anunciada do nosso planeta. Regressar, sobretudo, para celebrar a dimensão visceral do cinema de Ferrara. Que é como quem diz: mesmo quando trabalha a partir de histórias alheias a qualquer verosimilhança imediata (afinal, neste caso, estamos perante a espera do fim do mundo, marcado para a madrugada do dia seguinte, às 4 e 44 minutos...), ele é um cineasta que se mantém ligado ao fator humano, numa proximidade dramática que tem algo de fisiológico..Nesta perspetiva, 4.44 Último Dia na Terra contém ecos de alguns dos momentos emblemáticos da obra de Ferrara, desde Dangerous Game/Linha de Separação (1993), admirável travessia dos bastidores do próprio cinema, com Madonna e Harvey Keitel, até R Xmas - O Nosso Natal (2001), crónica amarga do mundo da droga centrada no par interpretado por Drea de Matteo e Lillo Brancato. Em boa verdade, o que liga todos estes filmes é essa fixação em casais em crise, num processo de desmontagem das relações homem/ /mulher que remete sempre para uma dimensão bíblica. Aliás, importa não esquecer que encontramos na filmografia de Ferrara o emblemático Maria Madalena (2005), com Juliette Binoche, em que uma atriz do elenco de um filme sobre a vida de Cristo cumpre um calvário existencial que baralha a experiência quotidiana, o trabalho artístico e a inspiração religiosa..Fortemente marcado pela sua educação católica, e também pela consciência do pecado que dela decorre, Ferrara nunca se limita a filmar as relações amorosas ou conjugais como um facto "sociológico". As suas personagens não existem em função de padrões meramente sociais, nem mesmo a partir de regras morais decorrentes de tais padrões: os seus comportamentos surgem sempre assombrados pela presença (ou pelo desejo) dos gestos divinos, numa vertigem que anseia pela possibilidade da graça (divina, justamente)..É isso que confere a 4.44 Último Dia na Terra uma tão singular e comovente intensidade emocional. Através do dispositivo clássico de ficção científica (o fim do mundo...), aquilo que Cisco e Skye representam é a descarnada possibilidade de entendimento das suas personagens, num jogo de angústias partilhadas que anseiam por algum sinal de transcendência. Observe-se, por isso, a presença obsessiva das imagens: na televisão, com as notícias do apocalipse iminente, e nas pinturas de Skye, nascidas de gestos aleatórios que procuram a manifestação de alguma ordem figurativa ou afetiva. Ferrara é o minucioso arqueólogo dessa procura.