"Os operacionais nunca são suficientes. Também não podemos ter um bombeiro atrás de cada árvore"

As ondas de calor e a seca prolongada aumentam o perigo de incêndios. Um desafio para os meios humanos e materiais que a Proteção Civil tem de colocar no terreno. Entre as várias situações em equação há uma certeza. "Tolerância zero ao perigo de vida. Não podemos arriscar baixas mortais nos incêndios", diz o presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil.
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Cinco anos depois dos grandes incêndios de Pedrógão Grande e da Zona Centro, cinco anos depois de dezenas de mortes terem abalado o país, a Proteção Civil está ou não diferente? Há ou não um esforço efetivo de meios para combater as novas ameaças que vêm do clima? As ondas de calor previstas para este verão voltaram a trazer-nos as más memórias de 2017. Por estes dias voltámos a ver populações em sobressalto, bombeiros esgotados e chamas que ficam por combater por falta de operacionais ou de meios aéreos.

Os relatos de quem vive lado a lado com o fogo impressionam e deixam a nu a fraqueza de uma estrutura que não consegue dar resposta a tudo.
O brigadeiro-general Duarte da Costa foi comandante operacional nacional do Comando Nacional de Operações de Socorro, além de ter tido outras funções na Proteção Civil. Tem 60 anos e nesta altura tem a difícil missão de ser presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil e de encontrar respostas para os pedidos de populações e estruturas que enfrentam no terreno os desafios colocados pelos fogos.

Estamos à espera de um agravamento das condições meteorológicas nas próximas semanas. Corremos o risco efetivo de viver situações semelhantes às que vivemos em Pedrógão?

Antes de mais obrigado por esta oportunidade de partilharmos aquilo que são as experiências e os valores que nos regem e, sobretudo, aquilo que é o trabalho desenvolvido pela Proteção Civil. Mas antes tenho de começar por fazer um agradecimento muito grande e dar um grande abraço de solidariedade a todas as populações que estão a sofrer neste momento o flagelo de ter fogos perto das suas casas. Também aos autarcas, que têm sido de uma inestimável ajuda para todos os sistemas e estão na linha da frente daquilo que é a Proteção Civil, porque não há Proteção Civil sem as autarquias a ajudarem. E como não poderia deixar de ser, um grande agradecimento aos nossos bombeiros voluntários, profissionais, da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, da GNR. A todos aqueles que estão neste momento nas frentes de fogo a combater, com temperaturas muito difíceis e que têm dito as palavras fundamentais: estamos aqui para ajudar e dar segurança às populações. Esse é um valor inestimável e, portanto, saibamos todos nós que temos a oportunidade de estar a gerir esta situação, saber estar à altura do esforço dessas pessoas. Relativamente à sua pergunta, as situações nunca são iguais. Aquilo que vivemos neste momento resulta de uma situação cada vez mais frequente que são as ondas de calor e que é acrescida pela situação de seca prolongada que temos. Isto resulta numa disponibilidade de combustíveis finos cada vez mais secos, mais stressados e com maior disponibilidade para arder. Aliás, chegámos a essa conclusão ainda no início da semana passada quando tivemos de começar a estudar que medidas propor para poder congregar todo este esforço nacional, a nível político, operacional, estratégico, para todos podermos fazer face a esta situação. Situações iguais ou diferentes de 2017, a mim não me deixam mais calmo ou mais descansado relativamente ao que se pode passar nestes próximos dias. O que tivemos nos últimos dias foi uma convergência de esforços a todos os níveis, que começou no nível político, passou pelas instituições e foi até às populações, com a ideia base de que a única forma de evitarmos estas situações não é com o combate. O combate é a última ação, é o último argumento, a solução baseia-se num trabalho que tem de ser feito, a começar pela prevenção das próprias pessoas perceberem que vivemos num período muito estranho e muito difícil. Nas palavras do meu comandante nacional, André Fernandes, vivemos uma situação explosiva. Temos referenciados alguns incêndios que começaram simplesmente com um carro a travar junto de onde havia combustíveis finos que se incandesceram em resultado dessa travagem. Neste sentido, acho que estamos muito diferentes de 2017.

Dê-me dois exemplos.
Maior coordenação em termos do que são todas as forças que estão a atuar, maior conhecimento do próprio posicionamento. Uma maior coordenação porque temos um sistema de monitorização que permanentemente nos dá todas as informações dos teatros de operações, juntamente com os dois meios aéreos que durante o dia nos vão dando imagens de infravermelhos e à noite imagens térmicas dos próprios incêndios. Enviam-nos essas informações com metadados com coordenadas, tempo e referenciação. Por outro lado, temos um sistema de comunicações muito mais fiável e muito melhor, o SIRESP. Não conhecia o SIRESP de 2017 porque não estava na Proteção Civil, mas todo o trabalho que se fez desde 2018 até esta altura, com maior número de antenas, maior capacitação das redes satélites, maior número de horas de bateria para cada antena, maior número de geradores para fornecer energia que nos permite essa comunicação. Além disto tudo, uma maior disponibilidade financeira, técnica e operacional. Temos mais operacionais, mais meios aéreos, mais dinheiro injetado no sistema, mas continuo a dizer que não é esta a solução. A solução é não haver ocorrências e as pessoas terem um comportamento que não provoque ocorrências.

A Proteção Civil tem insistido num conceito público de tolerância zero. Isso quer dizer o quê?
Quer dizer que, neste momento, tudo o que é atividade em espaços rurais não pode ter uso de máquinas e não pode haver uso do fogo. Aliás, até a própria permanência das pessoas nos espaços rurais está proibida. Não é que as pessoas provoquem um incêndio por dolo, aliás, a questão do dolo é até uma percentagem muito baixa, entre os 5% e os 10%. A questão agora é o comportamento negligente não intencional. Por exemplo, acender um cigarro, travar um carro nos espaços rurais, utilizar maquinaria, permitir trabalhos nos espaços rurais, tudo isto são situações potenciadoras daquilo que são os incêndios que possam ocorrer.

Em maio de 2021 disse aqui que "o combate não é solução para os incêndios é a prevenção", estou a citá-lo, e disse também que não há sistemas infalíveis. Um ano depois mantém estas declarações? Continuamos a ter sistemas falíveis?
Mantenho. Aliás, as imagens que temos visto e o conceito que todos apreendemos desta forma de combater os incêndios, percebemos que a nossa intenção é equilibrar aquilo que são os meios disponíveis com o esforço que podemos perceber. Não podemos gerir este sistema com base em perceções, hão de perceber que recebo muitas perceções, desde porque é que falamos ou não, até porque metemos mais bombeiros ou não. Isto tem de ser um estudo equilibrado que tenha por base o conhecimento científico, daí também o esforço que temos feito juntamente com as universidades, desde 2018. Por exemplo, o Instituto Nacional de Agronomia mostrou em 2018 o interesse de construir um modelo de predição e propunha-nos que enviássemos os dados. Dissemos que viessem para ao pé de nós, trabalhar connosco. Hoje em dia, já há quatro anos, que temos uma equipa do INA todos os anos, especialmente nesta fase, que está a trabalhar connosco. E não é trabalhar numa sala ao lado, é na célula onde está o núcleo de apoio à decisão. Esta célula está a receber o conhecimento que vem do terreno e que eles consubstanciam com o conhecimento que vem das universidades.

Temos mais conhecimento, mas temos mais prevenção?

Temos mais conhecimento e tem havido mais prevenção das pessoas e do seu comportamento. Mas sejamos honestos, isto só se resolve com uma prevenção estrutural daquilo que é o tratamento da nossa floresta. Mesmo aí tem havido um grande trabalho por parte do ICNF, mas também recordo que se nos lembrarmos que a campanha do cinto de segurança demorou dez anos a produzir efeito, esta campanha da mudança de comportamentos de uso do fogo, é também algo que vai demorar tempo. Por outro lado, todos os processos de cadastro e referenciação do que é a floresta, isto leva tempo. Costumo dizer que na Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, apesar da dificuldade do trabalho, temos o trabalho mais fácil. Nós organizamos, produzimos sistemas, combatemos e resolvemos as questões. O problema é todo o trabalho que demora anos, porque tornar uma floresta como a nossa numa floresta que seja economicamente viável, demora dez a quinze anos. Não podemos esperar um resultado imediato disso, mas vai produzir os seus efeitos. Seria fácil escudar-me na ideia de que a culpa é da floresta, mas a culpa é de todos nós e nesse aspeto está a fazer-se o trabalho. Só que no Plano Operacional e de Combate, temos resultados muito mais visíveis do que naquilo que é a modificação do espaço florestal.

E neste plano de prevenção e no plano da tolerância zero, a concentração motard em Faro deveria ter sido adiada ou alterado o local como aconteceu com um festival de música que passou do Meco para Lisboa?
O senhor primeiro-ministro deixou [na terça-feira, dia 12] na conferência realizada na Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, orientações claras sobre o que se pode e não pode fazer. A questão é o que é ou não permitido fazer face ao risco de incêndio. E pior que isto não é o risco de ocorrência de incêndio, é o risco desse incêndio não ser controlável, pondo em risco a vida humana. Penso que todos nós estamos impregnados deste sentido de segurança humana e de proteger as pessoas. Acho muito bem que tenha sido encontrada uma solução pela própria autarquia e pela própria organização e pedir às pessoas que façam este esforço. A solução apresentada pelo senhor presidente da câmara quer parecer-me que resolvia todas estas questões. Eu próprio já participei há alguns anos [no combate a incêndios] e percebo bem o que está em jogo. Portanto, temos de encontrar um equilíbrio, por forma a que se consiga fazer o que se pretende, mantendo a máxima fundamental que é a segurança das pessoas. Não há ninguém que possa fazer qualquer tipo de atividade se sabe que pode pôr em risco as pessoas. Por isso, acho que a solução encontrada foi uma boa solução.

Os operacionais que estão disponíveis e que dão apoio ao combate a incêndios são suficientes para aquilo que se prevê para este verão?
Citaria um professor de Finanças que tive que dizia que o dinheiro nunca chega. O que posso dizer é que os operacionais que temos no sistema nunca são suficientes. Também não podemos é ter um bombeiro atrás de cada árvore, uma aeronave em cima de cada vila e, portanto, tem de haver um estudo científico sobre quais são as áreas de maior risco. E foi isso que fizemos desde a semana passada, analisámos as áreas de maior risco, dentro dessas áreas recorremos ao pré-posicionamento e chegámos à conclusão que o dispositivo precisava de ser reforçado, e foi. As pessoas pensam que o dispositivo é fixo, mas não é, tivemos de arranjar mais 500 bombeiros. E, mais uma vez, os bombeiros voluntários assumiram a sua posição de cidadania e disseram "aqui estamos". Aumentámos o dispositivo com mais 100 equipas, ou seja, vamos atribuindo meios para aquelas situações que são de maior risco. Mas, sobretudo, a compreensão desta equação complexa que é a capacidade operacional com a capacidade de regeneração.

No início da semana estavam disponíveis 1500 bombeiros, mas afinal agora só estão 400 no terreno.
Diria que nesta altura devem estar perto de dois mil bombeiros no terreno em todos os incêndios que estão ativos. O incêndio de Ourém, que já foi dado como dominado, continua lá com cinco centenas de bombeiros. E estes não entram na contabilidade dos que estão a combater, mas estão a fazer um conjunto de medidas de proteção, de consolidação do perímetro e de defesa das casas. Portanto, não estão a combater, mas estão a participar no esforço de manter aquele incêndio apagado. Às vezes as pessoas pensam que o incêndio se apaga e os bombeiros vão-se embora. Não, apagou-se o incêndio, colocamos equipas a descansar, mas mantemos uma força ativa no território desse incêndio, porque de um momento para o outro surgem as reativações. As pessoas costumam dizer que são reacendimentos, mas são tecnicamente diferentes. O reacendimento surge depois de um incêndio estar perfeitamente extinto, mas não tivemos reacendimentos, o que estamos a ter são reativações. Por exemplo, para quem tenha lareira sabe que durante dois ou três dias pode usar lenha que não tenha chama, mas que está a crepitar nesse tempo. É o que sucede com o espaço vegetal das árvores que ficaram queimadas. Portanto, dois a três dias depois ainda temos de continuar a empenhar estes números elevados de operacionais por causa das reativações. E o que temos feito é, com o apoio das Forças Armadas, retiramos daquilo que é a consolidação de espaços mais fáceis os bombeiros para que possam descansar e mantemos as Forças Armadas para fazerem essas ações de rescaldo.

A colaboração está a acontecer mais do que em outros anos?
Não, diria que não. Em 2018 foi um ano difícil, 2019 foi um ano muito difícil, 2020 continuou a ser difícil, tivemos em 2021 um ano fácil e estamos a ter agora novamente um ano difícil, por conta das condições meteorológicas. A tendência da utilização operacional dos vários agentes é torná-los mais úteis naquilo que podem e sabem fazer. Se me perguntar se o rescaldo é algo fácil, depende. Há rescaldos que são feitos acima do terreno, e aí utilizamos qualquer agente que possa apoiar essa ação, quando é um rescaldo mais técnico em que o fogo continua debaixo do terreno, aí temos de ter equipas de bombeiros e especialistas no fogo, para poder continuar a fazer essas ações de rescaldo. E aí não podemos ter pessoas que não estejam tão vincadas e preparadas para esse efeito. Mas até iria mais longe: onde acho que temos tido mais esse apoio das Forças Armadas que tem tido um papel inestimável, é nas patrulhas de persuasão. Ou seja, na presença física nos espaços rurais e em tudo o que são as nossas matas. A própria presença de uma viatura militar a passar tem um efeito dissuasor daquilo que são possíveis intenções, quer de comportamentos negligentes, quer de comportamentos dolosos.

660 pessoas foram retiradas das suas residências por ameaça do fogo. Vamos continuar a assistir a este cenário durante os próximos dias?

Se me permite, a indicação que dei na Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil ao comandante nacional, e para ele difundir por todos os comandantes, é tolerância zero ao perigo de vida. Em caso de dúvidas, temos de pedir às pessoas para sair, não podemos arriscar que haja baixas mortais nos incêndios. Não são só os números de 2017 que nos afetam psicologicamente, o ponto importante é que cada vida perdida é uma tristeza familiar, é uma tristeza para o país estarmos a perder vidas. Portanto, a regra número um quando há situações de risco, e com a grande capacidade e ajuda que temos tido da GNR, é retirar as pessoas de casa, a vida humana é a principal prioridade. Toda a minha estrutura, todos os agentes de Proteção Civil têm isto na cabeça, a vida humana é a primeira grande prioridade. Depois, os bens e o património dentro daquilo que é possível, mas devido ao número enorme de ocorrências que temos tido, num aumento constante, e não podemos deixar que elas avancem.

Estamos a ser mais rápidos a impedir esse avanço?
As estatísticas dizem que estamos a ser muito mais rápidos nesta intervenção, mas mesmo assim, se tivermos 100 incêndios somos rápidos, se tivermos 200 não temos capacidade de ir a todos.

Quando ouvimos relatos de cidadãos à porta de casa, de mangueira e de balde na mão, a dizer que os bombeiros não estão aqui porque estão noutro sítio, isso corresponde a essa escolha que tem de ser feita?
A escolha depende sempre daquilo que são os comandantes operacionais no terreno e reconheço a todos os comandantes que, na sua área de atuação, façam a priorização daquilo que é o trabalho necessário. E se há uma zona que pode vir a ser fustigada pelo fogo mais tarde ou que pelo conhecimento do terreno se saiba que o fogo passa perto, mas não toca nas casas, eles deixam esse sítio para ir combater zonas onde estão a fazer falta. O rácio é muito simples, tudo aquilo que possa causar perigo à vida humana, é onde estarão os nossos bombeiros. E palavra seja dita que de entre todos os agentes de Proteção Civil, os bombeiros voluntários são verdadeiramente a espinha dorsal do próprio sistema. Apesar de serem voluntários, não são menos profissionais naquilo que é a sua capacidade técnica e têm sido o que nos tem feito pender a balança para o nosso lado. Tenho muita em todo o sistema, muita confiança em todos os bombeiros, muita confiança na Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil e em todo o seu corpo de comandantes do Comando Nacional. Aquilo que posso dizer-vos e dizer a todos os portugueses é que estamos a fazer tudo para salvaguardar a vida das pessoas, salvaguardar bens e património e tentar salvar o máximo possível de terreno. E é por isso que estamos a atuar no ar e em terra, com todos os meios, com comunicação, com todos os agentes e com a ajuda dos populares. E aqui a ajuda dos populares é no sentido de não fazerem fogo, não irem para os espaços rurais e não ocasionarem situações que possam causar uma ocorrência. A população portuguesa tem respondido, mas precisamos de ainda mais empenho por parte das pessoas. É verdade que há muitas ocorrências que surgem de comportamentos negligentes e se tivermos menos ocorrências, temos mais capacidade de responder a todos vós. Mas também não nos iludamos, porque fazemos uma análise científica daquilo que é o fogo e quando a libertação de energia de certos incêndios é superior à nossa capacidade de combate, não vamos gastar meios e recursos. Aí vamos ter de nos pré-posicionar, selecionar as zonas em que podemos combater, mas haverá coisas que vão ter de arder, é uma escolha do comandante no terreno que tem de assumir esses riscos. Aliás, comandar é sempre difícil, mas é por isso que temos comandantes e não apenas um programa de computador. Temos de dar a cara por aquilo que acreditamos e estou aqui para dar a cara pelo nosso sistema.

Está o senhor e está o novo ministro da Administração Interna. Sentiu diferenças no apoio à Proteção Civil entre este ministro e o anterior?
Não. Posso dizer que do governo sempre senti grande apoio nas questões ligadas à Proteção Civil, quer neste, quer no anterior. Aliás, vou para a Proteção Civil pela mão do anterior ministro. Sempre houve um apoio muito elevado e não me atrevo sequer a discutir as condições políticas de ação de um ministro ou de outro, esse não é o meu papel. Tive muito apoio do anterior governo e continuo a ter um grande apoio do senhor ministro da Administração Interna, que chegou à pouco tempo, mas vê-se em mãos com uma situação de gestão difícil. Tenho sentido todo o apoio do senhor ministro e da senhora secretária de Estado, aliás, tenho sentido todo o apoio dos vários agentes, dos dirigentes das organizações, estamos todos envolvidos nesta luta. E aquela máxima que costumo dizer muitas vezes de que juntos somos mais fortes, é mesmo verdade. Chega do tempo de olharmos para o nosso umbigo e de pensarmos que somos o centro do mundo, temos de ter uma perspetiva humilde. Temos de perceber que quem está em perigo são as populações, são os bombeiros e temos de fazer tudo o que está ao nosso alcance para defender as populações e para dar condições de combate aos bombeiros. O resto, quem é importante ou quem não é, isso discutiremos depois, o que é importante agora é estarmos todos juntos.

Sentiu na ação alguma diferença substancial entre o anterior ministro e este ministro neste ano específico?
Não, não senti nenhuma diferença relativamente à ação política sobre a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil. Talvez porque tínhamos vividos tempos mais simples em 2020 e 2021, pressuponho que o nível político estaria mais preocupado com a pandemia, que era algo que tínhamos de resolver. Agora torna-se mais visível porque estamos com um problema entre mãos, estamos com um governo que chegou há pouco tempo e que tem de resolver a importante questão dos incêndios. Continuo a dizer, senti o mesmo apoio político por parte de ambos os ministros e a mim só me cabe apoiá-los a todos. O meu patrão não é o governo, o meu patrão são os portugueses, são eles que me pagam, são eles que tenho de defender e a eles é que devo uma inestimável prova de lealdade, dando tudo do meu sistema e do meu esforço. E, portanto, é isso que tentamos fazer através da ação política do senhor ministro da Administração Interna e da senhora secretária de estado da Administração Interna.

Há pouco falou do difícil papel de comandante. O comandante dos bombeiros de Pedrógão poderá ser condenado pelos incêndios e António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros, já disse o quanto discorda disso e que o Estado não assumiu as suas responsabilidades. Qual é a sua opinião?


A minha opinião é pública e já disse o que penso sobre essa situação. Relembro que assumi, em 2018, o cargo. Algo que nunca disse em público é que todos os anos me dirijo a Pedrógão, vou àquela estrada, paro o carro e fico ali uns minutos antes de começar a campanha de incêndios. Isto para me relembrar a mim a mesmo de que isto não pode voltar a acontecer. Mas nesse ano, em 2018, a minha primeira ação foi ir cumprimentar publicamente o comandante de Pedrógão. Há poucos dias escrevi na minha página de Facebook aquilo que penso da situação, sendo que não discuto decisões que têm a ver com o plano jurídico. Não tenho o dever, nem sequer o direito, de julgar isso, é algo que está no plano judicial. Mas permito-me dizer que o comandante Arnaut, com o conhecimento que temos hoje do que se passou na altura, continuo a dizer que o comandante pouco ou nada podia fazer a mais do que fez. Tenho 40 anos de comando de tropa, algumas em operações, inclusivamente no Afeganistão. Comandar um ato de uma ação em operações é ter de decidir no momento, fazer o jogo mental das melhores modalidades de ação, escolher a mais provável calculando a mais perigosa. Isto é fácil de dizer assim, mas debaixo de uma ação de stress, de calor, em que estão pessoas a morrer, em que há todo um conjunto de situações que temos de resolver, a ação de um comandante deve ser inquestionável. Pode julgar-se se a ação foi a melhor ou não, mas não é uma ação de dolo. As ações dos comandantes de bombeiros que estão nos teatros de operações e dos comandantes da estrutura da Autoridade e da Proteção Civil que estão no teatro de operações e que têm de tomar decisões muito difíceis,
é uma situação muito complicada. Continuo a dizer que o comandante Arnaut tem todo o meu apoio pessoal e institucional, não questionando as questões judiciais ligadas a isto, mas digo e assumo que o comandante Arnaut muito pouco poderia ter feito naquela altura, com os meios e informações que tinha sobre uma situação completamente adversa e explosiva. Estou muito solidário com o comandante Arnaut e espero sinceramente que no meio desta situação o caráter e aquilo que é a pessoa do comandante Arnaut não sejam molestados com isto.

Há pouco disse que estamos melhor em comunicações do que estávamos nessa altura. Está preocupado com a demora do concurso e pode esta demora atrapalhar o trabalho de combate aos incêndios durante o verão?
Já tenho tanta coisa com que me preocupar que me preocupo com as coisas que me dizem respeito. O concurso do SIRESP diz respeito ao presidente do SIRESP S.A., diz respeito ao nível político, não diz respeito ao presidente da Autoridade. Aliás, não estou preocupado porque sei que seja qual for a situação, vou ter sempre comunicações e isso é a única coisa que me preocupa. Se o concurso é mais cedo ou mais tarde, honestamente não faz parte das minhas preocupações.

Portanto, está a assumir que a rede de comunicações vai funcionar nos próximos incêndios?
O que me preocupa sempre é arranjar as melhores condições para que a rede nunca falhe. Deixe-me contar-lhe um pequeno episódio: isto de dizer que as comunicações nunca falham, qualquer pessoa que diga isto, digo logo que não deve saber do que está a falar. Porque as próprias cartas de propagação dos sinais de rádio alteram-se durante o dia, durante a noite e até durante o próprio posicionamento. Por isso é que temos antenas SIRESP móveis que vamos aplicando noutros lados, para não haver de certeza falta dessa capacidade. Continuo a relembrar duas situações que são muito importantes e que caracterizam o SIRESP: uma delas foi quando tivemos o furacão Leslie que entrou pelo centro de Portugal, não sabíamos bem onde ia entrar, mas sabíamos que, fosse onde fosse, ia deitar abaixo linhas de média tensão. Isto quer dizer que iria haver antenas que ficariam apenas com cinco horas de carga, então falámos com o SIRESP S.A., falámos com a EDP e disse-lhes que assim que caíssem linhas de alta tensão precisávamos de saber logo quais são as antenas que não têm carga, para mandarmos para lá os geradores. No auge do Leslie, a única forma que tive de contactar com o presidente da câmara e com os operacionais foi com o SIRESP, nem rádio das outras redes, nem telefones ou telemóveis, foi só o SIRESP que me garantiu a comunicação. E é bom que isto seja dito, assumido e percebido, mas teve de haver um trabalho de preparação, o sistema não é infalível. Outra situação: quando tivemos agora o problema num dos operadores de telemóvel que teve um ciberataque. O que fizemos foi transferir todas as consolas de resposta daquilo que era o nível desse operador para o SIRESP. Sentiram algum efeito de atraso na resposta à emergência? Não, porque o SIRESP funcionou. É isso que tenho de passar, que o SIRESP, desde 2018, tem funcionado sempre e temos de fazer trabalho de planeamento, claro, como em tudo o resto.

Por definição, a proteção civil é, antes de mais, um dever de todos e de cada um individualmente. Mas em Portugal não há essa tradição de termos essa consciência de que deveríamos ser agentes de proteção civil.

Defende que deveria haver mais ações nas escolas ou até noções de proteção civil no currículo obrigatório?
Tudo o que envolva jovens em idade escolar, para mim é sempre um ganho. Conto-vos uma história particular de minha casa: até há poucos anos, não fazia separação do lixo e a minha filha, na altura com 14 anos, na altura diz-me, "pai, que vergonha é esta que não fazemos separação de lixo?".

Mas devia haver nas escolas um currículo para a proteção civil em geral?
Como responsável nacional pela Proteção Civil, diria que sim, mas temos de ser honestos na nossa abordagem e temos de saber se isto pode fazer parte de um projeto curricular que o Ministério da Educação defina. Mas tudo o que seja passar para os jovens conceitos de cidadania, não só de proteção civil, é positivo.

Mas admite que em Portugal não temos muito essa cultura, enquanto noutros países essa cultura existe?
Até 2017, estas questões da proteção civil estavam um bocado colocadas num plano afastado das pessoas. Mas com a dureza do que aconteceu, foi um sobressalto cívico que pôs a Proteção Civil nas bocas do mundo, a princípio pelas piores razões. Hoje, e felizmente, não é assim e esse tem sido o trabalho de toda a minha equipa. Aliás, na minha tomada de posse referi que um dos meus objetivos era mudar a própria imagem da Proteção Civil, mas a imagem consubstanciada em ações concretas e profissionais daquilo que sabemos fazer. Não quer dizer que as coisas não possam correr mal de um momento para o outro, mas estamos a fazer tudo para que não corram. Portanto, a educação dos jovens nesse aspeto é importantíssima.

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