"Os ocidentais querem solidarizar-se com as minorias e apoiam as ideias erradas"

Yasmine Mohammed viveu anos de pesadelo. Libertou-se pouco a pouco da opressão fundamentalista e hoje é uma ativista pelos direitos das mulheres. É ela quem organiza o dia sem véu, a 1 de fevereiro, em resposta ao dia mundial do hijab.
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Canadiana de pai palestiniano e de mãe egípcia, Yasmine Mohammed nasceu e cresceu em Vancouver. No entanto, apesar de ser cidadã num país ocidental, a sua vida só conheceu o sabor da liberdade nos últimos anos. Sofreu abusos às mãos do padrasto e de uma mãe cada vez mais extremista.

Criança, foi proibida de ouvir música, praticar natação ou de andar de bicicleta. Mais tarde não pôde prosseguir os estudos e foi enviada para o Egito, onde, apesar de tudo, se sentiu mais livre. No regresso ao Canadá teve de casar-se com um desconhecido. O marido batia-lhe e violava-a. Só podia sair de casa acompanhada e vestida de niqab (véu completo, só com os olhos à vista) e de luvas. Até que, depois de saber que o marido era operacional da Al-Qaeda e acabou preso. Se libertou, aos poucos da opressão do fundamentalismo islâmico.

Hoje, Yasmine Mohammed é uma ativista pelos direitos das mulheres e gere o programa Free hearts free minds, de ajuda às pessoas que, como ela, rejeitaram o islão, mas que vivem em países islâmicos e que enfrentam risco de vida.

Porque é que está a organizar o dia sem véu?
O dia mundial do hijab é no dia 1 de fevereiro. Foi criado para encorajar mulheres muçulmanas a usar o hijab. Em resposta eu criei o dia sem hijab, que é o dia para reconhecer e apoiar as mulheres que são forçadas a usá-lo. Usam-no não porque é uma escolha, não porque querem, mas porque a sua família ou o governo obrigam-nas a tal. É importante reconhecer estas mulheres.

Sabe quem está por trás do dia do hijab?
A organização tem o apoio de muitos governos, incluindo o norte-americano.

Do governo norte-americano?
(Risos) Sim, acredite ou não! Há muitos políticos a apoiá-la, é um grande projeto que se desenvolveu há uns anos. Eu comecei como ativista recentemente e no ano passado foi a primeira vez que respondi. Fiz um vídeo que teve mais de um milhão de visualizações. Há muitas pessoas que apoiam as mulheres que não querem o hijab.

Recebeu o apoio de grupos feministas ocidentais?
Infelizmente não tenho recebido. Tenho, isso sim, visto muitas feministas a fazerem o contrário, a usarem o hijab em apoio a uma interpretação do islão extremamente conservadora e fundamentalista.

Encontra uma explicação para este paradoxo?
Creio que nos Estados Unidos é em reação a Donald Trump. Foi ele quem criou a proibição de entrada de muçulmanos no país [ordem executiva que proibiu a entrada de cidadãos oriundos de sete países de maioria muçulmana e que ficou conhecido como muslim ban, a proibição de muçulmanos]. Os norte-americanos que se opõem a Trump pensam que se ele não gosta de muçulmanos eu vou adorar tudo relacionado com o islão. É um pensamento de vistas curtas. Têm de reconhecer que oporem-se simplesmente a Trump pode acabar em apoiar algo muito pior. Por exemplo, Trump não gosta do Irão e então vejo algumas pessoas em manifestações de apoio ao regime iraniano só pelo facto de Trump ser contra esse regime. É inacreditável porque o regime iraniano é brutal. Em definitivo, não é algo que se deve apoiar só porque Trump está contra.

E em relação aos grupos feministas europeus?
As feministas tentam não ser racistas e querem ser solidárias, o que é de louvar. Mas pelo facto de eu apoiar os judeus a poderem professar a sua religião de forma livre não significa que eu concorde com os aspetos misóginos e sexistas do judaísmo. O mesmo se aplica ao islão e ao cristianismo, etc. Se apoiamos as mulheres muçulmanas devemos apoiar as mulheres muçulmanas que querem ver-se livres do hijab. Devem apoiar todas as pessoas muçulmanas e não só os conservadores fundamentalistas.

Devido à sua atividade tem sido assediada? Recebeu ameaças de morte?
Infelizmente, essa é uma reação muito comum. A princípio ficava muito incomodada. Agora ignoro, não têm qualquer influência no meu humor.

Na sua luta contra a normalização do véu islâmico, tem denunciado nas redes sociais marcas como a Nike, Marks & Spencer ou a Mattel (com a Barbie).Alguma das marcas mudou de política?
Até ao momento não vi qualquer mudança nas políticas ou sequer uma resposta.

Um argumento que se brande contra pessoas que criticam aspetos do islão é que são islamófobos. O que pensa sobre o assunto?
O islão é uma religião tal como o comunismo ou o nazismo são uma ideologia. Tenho o direito de criticar uma religião ou uma ideologia. Ao fazê-lo devo ter o cuidado de não ser insultuosa para com as pessoas que seguem essa religião, mas vou pronunciar-me contra os aspetos negativos das religiões. Por exemplo, se denuncio a questão da mutilação genital feminina não é porque odeio as muçulmanas, manifesto-me porque me preocupo com as meninas que são mutiladas com lâminas. Há uma grande diferença entre manifestar-me contra a religião, porque é uma ideologia que tem muitos aspetos negativos dignos de serem criticados e, o que tentam dizer de mim, que é estar a ser odiosa para com os muçulmanos. O que não é verdade, de todo. A minha família é toda muçulmana. Quando falo sobre estes aspetos é porque me interesso com as pessoas que estão a sofrer sob essa religião, e não porque os odeio.

De certeza que seguiu as notícias sobre Rahaf, a jovem saudita que se refugiou na Tailândia e que obteve asilo no Canadá. Teve algum papel no desenrolar do caso?
O único papel que tive foi nas redes sociais, no Twitter. Entrei em contacto com ela antes de chegar ao Canadá e fiz uma campanha de crowdfunding na qual se juntou 10 mil dólares. Fiquei muito entusiasmada por ela poder começar uma nova vida no Canadá. Se ela precisar de alguma coisa sabe que pode contar comigo.

Rahaf também está em Vancouver?
Não, está em Toronto. Ainda não tive a oportunidade de me encontrar com ela, mas temos comunicado diariamente.

E quais são as primeiras impressões dela?
Está muito, muito contente. Mas como deve imaginar é um enorme choque para ela. Só tem 18 anos e é uma enorme mudança na vida. É sair de um planeta para outro, da Arábia Saudita para o Canadá. São demasiadas mudanças em tão pouco tempo. Ela fez uma declaração em como não vai dar entrevistas. Quer crescer e ter uma vida tranquila e gozar a liberdade proporcionada pelo Canadá. Estou 100% de acordo com ela.

O Canadá é um dos poucos países que critica abertamente a Arábia Saudita. E quanto ao islamismo no Canadá?
Porque temos a tal confusão das pessoas que querem solidarizar-se com as minorias, e que acabam inconscientemente por apoiar ideias erradas, o Canadá é vítima disso. E há um número alarmante de islamistas. Mas o Canadá começa a reconhecer que o islão é uma religião seguida por 1,6 mil milhões de pessoas, praticada de formas muito diversas; e que os nossos aliados na comunidade islâmica são os que partilham os mesmos valores, os que acreditam no humanismo, nos direitos das mulheres, na igualdade de género, nos direitos LGBT, etc. E que as pessoas que acreditam no islão político, na sharia, nas ideias contrárias aos valores canadianos não são nossos aliados.

Quando podemos ler o seu relato autobiográfico, The girl who would not submit?
(Risos) Gostaria de poder responder. A minha agente está a trabalhar no tema e sei que temos interesse de grandes editoras para lançá-lo em breve.

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