Os novos ensaios de Knausgard além de A Minha Luta
O filão dos escritores nórdicos em Portugal teve o seu (rein)início com a demolidora trilogia policial de Stieg Larsson, a saga Millenium. Não se podendo esquecer alguns outros autores "antigos" e fundamentais dessa região da Europa, tal como Henning Mankell e alguns Nobel de há décadas, como bons pratos da pouca ementa literária traduzida entre nós, a apetência por essa literatura teve um acrescento muito importante com a descoberta de outros nomes do espaço nórdico, como é o caso mais recente do norueguês Karl Ove Knausgard, um dos que chegou e venceu a resistência do leitor à novidade, apesar da dimensão pouco habitual da sua obra principal, A Minha Luta, distribuída por seis volumes de violenta ficção autobiográfica.
Até ao fim do mês a editora Relógio D"Água vai fazer chegar às livrarias o quarto volume dessa odisseia, que seduziu leitores nacionais de todas as idades perante uma narrativa que se estranha a princípio mas logo convence a maioria que iniciou o primeiro volume, A Morte do Pai, e continuou com Um Homem Apaixonado e A Ilha da Infância. A divulgação da obra de Knausgard não fica por aqui e a editora vai publicar mais do que já escreveu com a edição de um quarteto de ensaios, com o título prosaico das estações, iniciando-se este novo ciclo com o volume No Outono, uma longa carta a uma filha que vai nascer, ilustrado com belas aguarelas.
Num curioso artigo publicado há um ano na revista do Wall Street Journal, o autor, Liesl Schillinger, coloca como título da matéria o seguinte: "Porque Karl Ove Knausgaard não consegue parar de escrever?" Essa é a grande questão que surge após ter entregue 3600 páginas de A Minha Luta e ter continuado no mesmo cumprimento de onda, que define como "a atormentada vida íntima de um macho".
Durante o convívio de três dias com Knausgard, o autor do artigo teve a sorte de assistir à primeira leitura pública deste ensaio em Oslo. Knausgard leu Om høsten (No Outono) num café literário perante uma audiência interessada, mas mesmo assim receava a receção. Quem lá estava gostou e o modo como foram recebidas as páginas lidas foi referido como "uma apreciação exuberante". Ou seja, deduz-se, o escritor poderia ficar descansado que não desiludia. Afinal, ele próprio confessaria: "Não alterei a minha forma de ser e de sentir, porque o sucesso não facilita a observação desses sentimentos. A forma de ser nada tem a ver com o que nos acontece. É irrelevante."
Esse momento libertador poderá ter tido o mesmo valor de quando iniciou o sexteto que está a ser traduzido por todo o mundo. Para trás ficavam duas primeiras experiências literárias, Out of the World (1998) - que lhe valeu O Prémio da Crítica Norueguesa, e A Time for Everything (2004), o seu preferido.
Um registo confessional que, dizem os noruegueses, faz parte da personalidade dos habitantes do país. Daí que não se estranhe que após quase quatro mil páginas de alta exposição pessoal e familiar como são as de A Minha Luta, talvez até de uma narrativa indiscreta, que Knausgard volte a navegar nessas águas neste novo trabalho, o conjunto de ensaios No Outono. Numa continuação literária em que se fixa importância ao individual e de intimidade em detrimento do coletivo em grande parte dos textos aqui reunidos.
Onde retrata tanto os temas da vida pessoal, caso do nascimento da filha (ler pré-publicação); reflete sobre a pintura: "Van Gogh na realidade não era pintor nenhum". Ou no que o rodeia: uma vespa ou um saco de plástico. Até peças de fruta...
Pré-Publicação
No Outono
Carta a uma filha que vai nascer
28 de agosto. Agora, no momento em que escrevo isto, não sabes nada, nada do que te espera, do mundo a que vais chegar. E eu nada sei de ti. Vi uma imagem na ecografia, e pus uma mão sobre o ventre em que estás, é tudo. Faltam seis meses para nasceres e muito pode acontecer durante esse tempo, mas eu creio que a vida é forte e inexorável, e creio que tudo se vai passar bem contigo e que vais nascer perfeita, saudável e forte. Vir à luz, diz-se. Quando a tua irmã mais velha, a Vanja, nasceu, era de noite, a neve rodopiava na escuridão. Um momento antes de ela nascer, uma das parteiras puxou-me, tu vais recebê-la, disse ela, e foi o que fiz, um bebé deslizou para as minhas mãos, escorregadio como uma foca. Eu estava tão feliz, que até chorei. Quando a Heidi nasceu, um ano e meio mais tarde, era outono e o céu estava encoberto, o tempo estava frio e húmido como pode estar em outubro, ela chegou de manhã, o parto foi rápido, e quando a cabeça estava de fora, mas não o resto do corpo, ela emitiu um pequeno som com os lábios, foi um momento tão sereno. John, que é como se chama o teu irmão, nasceu numa cascata de água e sangue, o quarto não tinha janelas, como se fosse um bunker, era essa a sensação, e quando depois saí para telefonar aos vossos avós, surpreendeu-me a luz cá fora, e que a vida decorresse como se nada de especial se tivesse passado. Era a quinze de agosto de 2007, às cinco ou seis horas, em Malmo, para onde nos tínhamos mudado no verão anterior. Mais tarde, nessa noite, fomos de carro para uma casa de repouso, e no dia seguinte fui buscar as tuas irmãs que se divertiram muito a colocar um lagarto verde de borracha na cabeça dele. Três anos e meio e quase dois, era a idade delas nessa altura. Tirei fotos, irás vê-las um dia.
Assim vieram eles à luz. Agora são grandes, agora habituaram-se ao mundo, e o estranho é que são tão diferentes, personalidades tão diversas e completas, e sempre o foram, desde o primeiro momento. Eu penso que vai acontecer o mesmo contigo, que já és aquela que vais querer ser.
Três irmãos, uma mãe e um pai, somos nós. É a tua família. Se menciono isto primeiro, é porque é o mais importante. Bem ou mal, quente ou frio, severo ou gentil, não importa, é o mais importante, são as relações através das quais vais ver o mundo, e que vão formar a tua opinião acerca de quase tudo, direta ou indiretamente, quer seja em oposição ou concordância.
De momento, agora, nestes dias, estamos bem. Hoje, enquanto as crianças estavam na escola, a tua mãe e eu fomos a Limhamn, e lá, num café, no calor deste final de verão - esteve hoje um dia fantástico, sol, céu azul, com uma leve sensação de outono no ar, com todas as cores como que profundas, mas ao mesmo tempo nítidas - discutimos como é que tu te irias chamar. Eu tinha proposto Anne, no caso de seres uma menina, e então a Linda disse que gostava muito do nome, que tem qualquer coisa de leve e luminoso em si que queríamos que estivesse associado a ti. Se fores um rapaz, vais chamar-te Eirik, propusemos nós. Então terás o mesmo som no nome que os outros três irmãos - j - porque quando se dizem os nomes em voz alta, todos o têm - Vanja, Heidi, John.
Estão a dormir agora, os quatro. Estou sentado no meu escritório, na realidade trata-se de uma pequena casa com dois quartos e um sótão, e olho por cima da relva para a casa onde eles estão, as janelas escuras seriam invisíveis se não fossem os candeeiros da rua do outro lado, e a luz deles enche a cozinha de um suave e fantasmagórico brilho. A casa na realidade são três casas a seguir umas às outras, ligadas entre si, formando uma. Duas delas são de madeira pintada de vermelho, a outra é de pedra caiada. Noutros tempos, eram as famílias que trabalhavam numa das grandes quintas daqui que moravam nelas. Entre estas duas casas existe uma casa de hóspedes, a que chamamos casa de verão. Na parte interior da ferradura que constituem, está o jardim, que se estende talvez uns trinta metros até um muro branco. Há duas ameixoeiras, uma velha que tem um ramo que cresceu tanto e que se tornou tão pesado, que tem de ser sustentado por duas muletas, e uma nova, que plantei no verão passado, e que dá fruto pela primeira vez agora, além de uma pereira, também velha, bastante mais alta que a casa, e três macieiras. Uma das macieiras estava num estado lastimável, muitos dos ramos estavam mortos, parecia rígida e sem vida, mas podei-a no começo do verão, nunca o tinha feito antes, e entusiasmei-me muito, cortei mais e mais sem ver como ficava, antes de finalmente, ao fim da tarde, descer e afastar-me uns passos para a observar. Aniquilada, foi a palavra que me veio à cabeça. Agora os ramos cresceram, cheios de folhas, e está carregada de maçãs. Foi a experiência que adquiri ao trabalhar no jardim, não há nenhuma razão para se ser cauteloso ou ter medo de alguma coisa, a vida é tão robusta, como que jorra em cascata, cega e verde, e por vezes mete medo, porque nós também vivemos, mas sob uma espécie de circunstâncias controladas, que nos fazem ter medo do que é cego, selvagem, caótico, que se ergue para o sol e que a maior parte das vezes é belo, mas de uma forma mais profunda do que a visual, pois a terra cheira a putrefação e negrume, pejada de escaravelhos velozes e convulsivas minhocas, os caules das flores são sumarentos, as corolas transbordam de aromas, e, como uma película, a presença do ar, frio e cortante, quente e húmido, cheio de raios de sol ou de chuva, cola-se à pele sensível. Atrás da casa principal está a rua, que desemboca uns cem metros adiante numa espécie de pequena zona semi-industrial abandonada, os edifícios têm telhados de zinco ondeados e as janelas estão partidas, motores e eixos ferrugentos jazem espalhados por ali, meio submersos na erva. No outro lado, atrás da casa onde estou sentado, existe um grande edifício de lavoura de tijolo vermelho, bonito e dominante no meio de toda a verde folhagem.
Vermelho e verde.
A ti não te diz nada, mas para mim há tanto nessas duas cores, uma espécie de voragem que nos atrai nelas, e eu penso que isto é uma das razões por que me tornei escritor, porque eu sinto essa voragem tão forte, e compreendo que é importante, mas não tenho palavras para a expressar, e por isso não sei o que é. Tentei, e capitulei. Os livros que publiquei são essa capitulação. Um dia poderás lê-los, e talvez possas entender o que quero dizer. O sangue que circula nas veias, a erva que cresce na terra, as árvores, oh as árvores que se agitam no vento.
Esta maravilha, que em breve irás encontrar e poder ver, é muito fácil de perder de vista, e existem tantas maneiras de o fazer como existem seres humanos. É por isso que escrevo este livro para ti. Quero mostrar-te o mundo tal como é, aqui mesmo à nossa volta, permanentemente. Só o fazendo posso eu mesmo captá-lo.
O que é que faz a vida ser digna de ser vivida?
Nenhuma criança faz esta pergunta. Para as crianças a vida é uma evidência. A vida fala por si própria: se é boa ou má, não tem nenhuma importância. É assim porque elas não veem o mundo, não avaliam o mundo, não refletem sobre o mundo, mas estão tão profundamente no mundo, que não fazem a separação entre ele e elas próprias. É só quando isso acontece, quando surge uma distância entre aquilo que elas são e o que o mundo é, que a questão se põe: o que é que faz a vida ser digna de ser vivida?
É a sensação de pressionar o puxador para baixo e abrir a porta, sentir se abre para dentro ou para fora nas dobradiças, sempre leve e fácil, e entrar noutro quarto?
Sim, a porta abre como uma asa, e apenas isso já faz a vida ser digna de ser vivida.
Se uma pessoa já viveu muitos anos, a porta é uma evidência. A casa é uma evidência, o jardim é uma evidência, o céu e o mar são evidências, a própria lua, que se suspende sobre os telhados e os ilumina de noite, é uma evidência.
O mundo fala por si próprio, mas não o escutamos, e como já não estamos profundamente nele e o sentimos como uma parte de nós mesmos, é como se ele desaparecesse. Abrimos a porta, mas nada significa, não é nada, é apenas uma coisa que fazemos para passar de um quarto para outro.
Quero mostrar-te o nosso mundo, tal como ele é agora: a porta, o chão, a torneira e a pia, a cadeira de jardim junto à parede, debaixo da janela da cozinha, o sol, a água, as árvores. Tu irás vê-lo da tua própria maneira, virás a ter as tuas próprias experiências, e a viver a tua própria vida, portanto é evidente que acima de tudo é por minha causa que o faço: mostrar-te o mundo, faz a minha vida digna de ser vivida.