Os museus, palácios e monumentos nacionais em tempo de mudança
Começa por estes dias a ser aplicado o novo regime de autonomia administrativa dos museus, palácios e monumentos do Ministério da Cultura, instituído pelo decreto-lei n.º 78/2019, de 5 de Junho. Já muito se disse sobre os benefícios e insuficiências deste novo enquadramento. Pessoalmente, e também enquanto dirigente associativo que participou nas negociações iniciais para a sua elaboração e tem obrigação de conhecer o que se vai passando por essa Europa fora, tenho afirmado que considero globalmente positivo o novo quadro criado. Positivo pela muito maior responsabilização dos directores destes espaços, que passam a dispor de mandatos limitados (excelente princípio, mas porventura demasiado reduzido no DL, 9 anos no máximo, quando se poderia e talvez devesse admitir período maior, 12 ou até 15 anos), mas ganham também legitimidade própria, não integrando a hierarquia orgânica da Direcção-Geral de tutela - e são além disso seleccionados por júris credíveis, através de concursos universais (internacionais também, mas isso é o que menos conta; a verdadeira revolução está em serem abertos a todos os cidadãos portugueses habilitados, fazendo explodir o enclausuramento viciante dentro dos quadros da administração pública). Positivo pela contratualização plurianual, com garantia assegurada de verba para cobrir a despesa negociada. Positivo pela criação de um mal chamado Conselho Geral de Museus, que a actual ministra teima em afirmar que nunca existiu, quando na verdade sempre funcionou (até à imposição do centralismo ultramontano da actual DGPC), reunindo todos os directores de museus e, mais tarde, de palácios (de fora apenas os directores de monumentos), em diálogo directo com os sucessivos ministros do sector. Positivo pelo chamado princípio da repartição solidária da receita, distribuindo o bolo total (que se situa seguramente muito acima dos 30 milhões de euros, considerados todos os equipamentos, da DGPC e das DRCs), de tal modo que das poucas unidades superavitárias se obtenham recursos para a actividade das muitas deficitárias. Positivo pela consignação a cada unidade da receita que exceda o valor previsto em cada ano. Positivo pela capacidade de protocolação com entidades externas e uso próprio dos recursos assim gerados (especialmente significativos no caso dos chamados "projectos europeus").
Mas existem lados negativos, claro. O mais programático é o do estatuto de "serviços não personalizados" encontrado para estas "unidades orgânicas" - o que significa que, embora sejam acolhidas no Registo Nacional de Pessoas Colectivas, e possuam por isso um número de identificação (NIPC), continuam a não poder arrecadar receita e executar despesa autonomamente, ou seja, sem intervenção jurídica e processual das chamadas tutelas. E aqui é que começa a bater o ponto que pode deitar tudo a perder nesta limitada, mas bem-intencionada, reforma.
Tratar por igual que é diferente sempre constituiu um erro administrativo - e, no plano político, uma caricatura de democracia. Ora, é manifesto que os monumentos, mesmo os mais emblemáticos e de maior actividade (caso da Mosteiro da Batalha ou do Paço Ducal de Guimarães, por exemplo, que cumpre saudar), são muito diversos dos museus. Nunca tiveram, não têm de ter nem recursos humanos, nem acervos, nem a equipamentos laboratoriais e outros, nem planos editoriais e expositivos, nem personalidade institucional própria impositiva de autonomia administrativa. Mesmo os palácios estão a meio caminho. E até entre os museus do MC há diferenças significativas - situação que nos últimos tempos foi especialmente enfatizada pelo anterior director do MNAA, com alguma razão, mas cometendo o pecado mortal de pretender que apenas o "seu" museu merecia ser diferenciado dos restantes. Pode bem ser que o figurino "não personalizado" seja o que mais convém à maioria destas unidades. Mas ele não é certamente o que melhor dá conta da realidade dos principais museus nacionais, aqui ou no estrangeiro, os quais durante décadas, nalguns casos em mais de um século, sempre gozaram de completa autonomia jurídico-administrativa e imagem social própria. Estou certo que se verá como assim é quando daqui a dois anos se fizer a avaliação a que obriga o DL. E quando tal suceder, confirmar-se-á como se torna indispensável possuir uma retaguarda ligeira e operacional, dedicada exclusivamente a cumprir esta função - um Instituto de Museus, Palácios e Monumentos Nacionais, a (re)criar, ficando todas as restantes missões, nomeadamente as normativas legais, as inspectivas e as de grandes obras, confiadas a outro organismo, porventura com o estatuto de Direção-Geral.
O problema é que para que daqui a dois anos se possa fazer avaliação estratégica, conducente a novo passo em frente, é preciso que no entretanto se previnam os mil escolhos que se começarão a fazer-se sentir, desde já. Os detalhes da transição dos actuais directores para os que resultem de concursos; os critérios de definição do histórico de receita para efeitos de contratualização futura; a garantia absoluta da aplicação das verbas a que se refere este DL para actividades (programação e consumos correntes) e não, nunca mesmo, para pagamento de vencimentos de funcionários ou obras de fundo nos edifícios; a transparência, incluindo publicitação para conveniente controlo cidadão, dos critérios que em cada caso tenham levado ao estabelecimento dos tectos de despesa contratualizados - tudo serão aspectos a acompanhar atentamente pelo Conselho Geral de Museus, em íntima relação com a ministra da Cultura ou quem a represente. E não sejamos ingénuos: os poderes fáticos da DGPC e das DRCs não irão aceitar de bom grado perder parte do poder que têm; não irão alegremente alienar as dezenas de milhões de euros de receita dos museus, palácios e monumentos, que até aqui usaram como entenderam (deverão aliás ser parcialmente deles ressarcidos através de acréscimo de verbas nos respectivos OE); muito menos aceitarão passar a desempenhar somente a figura de TOCs desses "serviços não personalizados" - importa, pois, criar desde já nas tutelas gabinetes operacionais próprios para estes efeitos e denunciar as entropias logo que comecem a revelar-se.
Será tudo isto realizável? Bem, tudo depende do cometimento do Poder Político. Neste sentido os sinais são contraditórios: bons, pelo cuidado e assertividade que a actual ministra tem demonstrado relativamente a esta matéria; maus, porque se detectam também nela os vícios que vêm toldando a "geringonça" nos últimos meses, ou seja, uma certa empáfia em que os partidos do poder são useiros, quando vislumbram hipóteses grandes ganhos. Neste contexto, diria como disse há dias o presidente da Associação 25 de Abril, declarado apoiante do PS: que tenha sucesso, mas sem maioria absoluta.
Arqueólogo. Presidente do ICOM Europa