Os mostrengos de barro caramelizado

Júlia Ramalho, neta de Rosa Ramalho, faz 70 anos e tem uma exposição no Museu da Olaria. A Geração Ramalho, na qual já estão os filhos dela, Teresa e António, também. São dois olhares sobre a família de São Martinho de Galegos que faz do barro vidrado uma língua mágica de mil palavras. Uma viagem ao mundo encantado.
Publicado a
Atualizado a

Júlia Ramalho, quase 70 anos (completa-os na terça-feira) fala há uma hora. Percorremos, com vagar, as salas do Museu de Olaria de Barcelos rodeados de peças daquela família de poetas do barro - há muitos pormenores e histórias a contar. Júlia para, olha-nos e pergunta, de supetão: "Estão mesmo a gostar ou é só para nos fazer a vontade?" É assim esta mulher pequena, irrequieta, inesperada. Desarmante.

Talvez seja um gene que a avó Rosa Ramalho lhe passou. O gene do desafio, da luta, do não haver impossíveis. Do transformar sonhos maus em mostrengos de barro, em peças em que o limite não é a imaginação, é a capacidade de fazer do barro uma língua de mil palavras.

[artigo:5150893]

O Museu de Olaria, em Barcelos, recebe por estes dias duas exposições com assinatura Ramalho. No primeiro andar, Geração Ramalho junta trabalhos de Rosa, Júlia e dos filhos desta, Teresa (45 anos) e António (47). Uma linhagem de barristas, que perpetua o legado de Rosa, falecida em 1977. Foi depois de enviuvar, com sete filhos a cargo, que se dedicou a tempo inteiro ao ofício que já moldara desde os primeiros anos de vida - a primeira peça que fez foi um cesto, aponta Teresa, uma foto na parede. Rosa Ramalho começa a fazer cristos, cabras, cabeçudos. Seres que transforma em arte - mas ela não sabia. De facto, ninguém sabia. Foi numa das feiras onde vendia as suas peças que o pintor António Quadros descobriu a arte infantil e surreal desta mulher. Corria o ano de 1956 e o anonimato começava a acabar. Não tardaria a começar a assinar as peças com o duplo R.

"O grande volume de peças vidradas aparece depois de ficar viúva porque não tinha tanto tempo e percebeu que era mais rápido e acaba por se tornar a imagem da geração Ramalho. Há peças que são muito conhecidas. Os cristos são muito conhecidos. Os cabeçudos também, e depois aquelas peças mais ligadas ao fantástico, as macacas, os homens-sereia", explica Cláudia Milhazes, diretora do Museu de Olaria.

"Não sai sempre igual"

"Esta cabra está lindíssima. Veja lá se não tem mão de artista... 1965... É das primeiras. Ela fazia as coisas e só um ano ou dois depois é que dava por ela. Punha de lado. Ninguém comprava, não pense lá. Há 50 anos a crise era como agora, tanto fazia ser para os da fábrica como para os artesãos", diz Júlia. Olha cada peça da avó nas vitrinas do museu. Há sempre um pormenor que lhe salta à vista e uma enorme ternura no falar. Uma ternura que, tal como o jeito com o moldar do barro, passa de geração em geração, como se o vidrado do barro fosse, afinal, também o caramelo que os une.

Júlia, que o museu homenageia no andar de baixo com a exposição 60/70 (60 anos de carreira, 70 de vida, comemorados no dia da festa da cidade, daqui a três dias), começou a moldar o barro com a avó Rosa: "Eu queria estudar mas não me deixaram porque o que eu ganhava para casa fazia falta." As histórias sucedem-se. Sem vírgulas, sem pausas, quase sem nos ouvir a perguntar. Como se estivesse a reviver tudo outra vez.

Dirá, a dado momento, que quando olha para uma peça sabe logo se é da avó. "E sinto saudades... Sinto tantas saudades da minha avó que vocês nem imaginam..." E este dizer de palavras traz lágrimas nos olhos. Mas logo corta e volta a Cascais, à história da feira do artesanato do Estoril a que foi com a avó, nos anos 1960, em que venderam a banca toda logo no primeiro dia. E o que fez nos 16 dias seguintes. Encomendas?, perguntamos. "Qual encomendas?! Andámos a passear mais o vice-presidente da câmara. Pôs o carro da câmara à nossa disposição, fui ver o Palácio de Sintra, fomos ao Jardim Zoológico, fomos a todos os lados. E no fim ainda ganhei 30 escudos por dia. E veio o Dr. Avilez com um molhadica de notas de 20. E eu fiquei a olhar para ele. Hoje paga-se para ir às feiras..."

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt