Os médicos tarefeiros de hoje
Começamos a ter Médicos tarefeiros nos nossos Serviços de Urgência, há cerca de 20 anos. Na altura, foi a resposta encontrada para o aumento progressivo dos recursos à Urgência, em resultado da incapacidade manifesta de atendimento nos Centros de Saúde. Também me lembro, do enorme erro que foi a retirada dos Médicos de Medicina Geral e Familiar (MGF) das Urgências Hospitalares, em nome da necessidade serôdia da separação dos vários níveis de cuidados. Essa decisão, teve péssimas consequências, principalmente nos Hospitais Distritais. Ainda pude ter a grata experiência de trabalhar no Serviço de Urgência do Hospital de Barcelos como Internista, com três colegas de MGF na mesma equipa, de quem fiquei amigo. Nunca voltei a ter um diálogo tão fácil com os Cuidados Primários, com a capacidade real de fazer um tratamento integrado do doente crónico!
O Médico tarefeiro era, por norma, indiferenciado. Muitos, eram jovens Médicos que não tendo obtido nota na Prova Nacional de Seriação para acesso à Especialidade pretendida, encontravam naquele trabalho o sustento para fazerem novo exame, no ano seguinte. Às vezes, a vontade do estudo ia esmorecendo, e a saga repetia-se por vários anos. Outros, vinham de Países em dificuldades, á procura de um futuro melhor. Alguns, ficavam algo viciados na medicina aguda de gravidade ligeira, em que gozavam de autonomia e boa remuneração, e iam saltitando nos Serviços de Urgência de vários hospitais.
A crise que agora eclodiu em Portugal, com o fecho de Urgências Obstétricas em catadupa, é um sinal grave duma doença que corrói o SNS. Não se limita à Ginecologia e Obstetrícia. Começou nesta área, porque talvez seja nestes Serviços que a dependência de Médicos Especialistas tarefeiros seja maior. Mas, se não houver medidas concretas, os outros Serviços passarão por dificuldades semelhantes para colmatar as falhas das suas escalas de urgência. O trabalho regular básico dum Serviço Hospitalar, tem de ser assegurado pelo seu quadro próprio, e a contratação externa deverá ser apenas pontual.
É bom acabar com o tabu, de que o Especialista não possa trabalhar em regime de tarefa no seu próprio Hospital, permitindo-lhe que o faça noutro! Revejam-se as remunerações das horas extraordinárias dos Especialistas de carreira, para que não seja vexatória a comparação com o Especialista em regime de tarefa! Encontre-se um objetivo percentual razoável para que cada Serviço Hospitalar, Público ou Privado, tenha um número de Médicos em dedicação exclusiva, que permita à Instituição contar com a sua disponibilidade.
A valorização da carreira médica, é um passo crucial para a fixação de profissionais no SNS. A gestão dos Serviços tem de ter instrumentos que premeiem quem se dedica mais. O poder político tem de ter bons conselheiros, conhecedores da realidade, para que não surjam leis inexequíveis. As Urgências param se os Médicos se recusarem a fazer mais do que 150 h extraordinárias por ano. Com cerca de 70% de Médicos Mulheres, como se preenchem as escalas noturnas de Urgência se todas pedirem dispensa até os filhos completarem 12 anos? Será que não fazia sentido fazer o que acontece em muitos Países, em que os Internos de Formação Específica estão em dedicação exclusiva no seu hospital de formação e aí têm de se manter por um período mínimo de dois anos, após a sua titulação?
O tempo começa a escassear para voltarmos a ter um SNS que nos orgulhe. Não é possível tomar decisões com agrado de todos. Os Portugueses deram uma maioria absoluta ao Governo e esperam que tenha valido a pena, para não ficarmos sempre numa mescla de compromissos pífios!
Presidente Cessante da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna